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A gente não quer só comida 

Fome, desperdício e obesidade, em união, demonstram questões sociais que vão além das refeições

“O Johnny termina.”

Minha avó sempre soube que sou bom de garfo, então já estou acostumado a raspar panela quando sobra comida. Ela já teve uma rotisserie, instalada na garagem da casa do irmão dela. Me recordo dos dias perambulando pela loja, admirado com os pratos que eles vendiam. O cheiro de assado vindo do forno industrial. A farinha de trigo espalhada na mesa. A massa esticando. A máquina de frituras. O tambor de carne assada, cujo calor dissipado deixava uma miragem no horizonte. Sempre ficava à espreita, aguardando alguns pedaços de torta ou do frango assado, ou observando as ondas de calor da rua entre uma brincadeira e outra. 

Comer é bom. Diversos aspectos culturais estão intimamente atrelados à alimentação. Mas, infelizmente, comer bem ainda é um privilégio. 

Os números evidenciam contradições. No mundo, são mais de 800 milhões de pessoas que passam fome, mais de 1 bilhão de toneladas de alimento desperdiçados, e a obesidade afeta 1 a cada 8 pessoas. Assim, o problema central não se encontra na disponibilidade de alimentos. Sobra comida e a distribuição está longe da ideal. Há uma tríade de problemas relacionados à alimentação: desperdício, fome e obesidade.

Por que desperdiçamos tanta comida? 

Moro num país tropical
Abençoado por deus
E bonito por natureza

Jorge Ben Jor

O Brasil é um dos maiores produtores de alimento no mundo, se posicionando atrás apenas dos EUA e Europa. Condições climáticas favoráveis e a vasta extensão territorial estão entre os principais fatores que permitem tal desempenho. “A abundância na produção leva à certa ‘insensibilidade’ e ineficiência em relação ao desperdício. Nos acostumamos a desperdiçar alimentos, o que não é o certo”, constata Flávia Mori Sarti, professora da Universidade de São Paulo e especialista em temas voltados à economia da nutrição.

Para Gustavo Porpino, líder da pesquisa realizada pela Embrapa sobre desperdício de alimentos, a abundância na oferta leva também aos hábitos de consumo que favorecem a cultura da fartura. “Várias famílias não estão acostumadas a planejar a compra de alimentos, o que leva ao grande estoque de comida em casa. Consequentemente, há fartura no preparo das refeições.” 

Porpino explica que não são apenas famílias com renda mais alta que valorizam a abundância. Famílias de classe média-baixa também participam desse ciclo. “Elas estão mais propensas a fazer grande compra mensal logo após receberem o salário, porque o mais importante para elas é garantir que haverá alimento para a família até o final do mês.”

Outra lembrança de minha avó vem à mente. Ela me pede para pegar não sei quantos galões de óleo, além de alguns pacotes de arroz, feijão e açúcar. Muitas laranjas e bananas, também. Sempre fiquei encucado com tal comportamento de consumo dela. Me vem à memória uma certa aula de história. A professora explica o período dos anos 80 no Brasil, em que altas taxas de inflação moldaram a maneira como as famílias faziam compras. Garantir estoques de mantimentos era uma forma de driblar as frequentes alterações de preço dos produtos. Ou, como afirma Flávia Mori: “Tanto para a sociedade brasileira quanto para qualquer sociedade no mundo, existem aspectos que são relativos a tradições de consumo dos alimentos, incluindo também períodos de escassez.”

A cultura da fartura também influencia a forma como os alimentos são servidos em restaurantes. “Em diversos estabelecimentos de São Paulo, são servidos os chamados pratos-feitos. Na maioria das vezes, as porções de arroz são muito fartas”, explica Gustavo Porpino. Segundo ele, pelo fato dos pratos-feitos serem servidos no horário do expediente, muitas vezes os restos de comida não são levados para casa. O destino final é o lixo. Para o analista da Embrapa, uma solução possível e vantajosa, tanto para os restaurantes quanto para os clientes, é servir uma porção reduzida de arroz e dar a possibilidade de repetir o alimento, caso necessário. 

Apesar da cultura da fartura influenciar no desperdício de comida, há outros fatores até mais relevantes. Segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 50% do desperdício de alimentos ocorre no transporte. O coordenador de comunicação da ONG Banco de Alimentos, Gabriel Monteiro, explica que o número se dá pelas longas distâncias percorridas entre o local de colheita e os entrepostos. “Tem verdura que é plantada em Mato Grosso, é transportada até o CEAGESP (em São Paulo) e é comprada por varejistas de cidades do Mato Grosso, voltando para o Estado onde foi plantado.” 

Monteiro ressalta a importância de se comprar alimentos de produtores locais, pois reduz o desperdício e a utilização de combustíveis fósseis. Gustavo Porpino afirma que a cadeia de produção de comida, desde a lavoura até os restaurantes, pode adotar medidas que ajudem na mitigação do desperdício. O oferecimento de meia porção nos restaurantes, o plantio das verduras e frutas em horta própria e a conexão entre estabelecimentos e bancos de alimentos são algumas alternativas citadas pelo analista. 

Da fartura ao exibicionismo

Coxinhas de 1kg. Lanches contendo 4 ou 5 hambúrgueres. Pizzas gigantes. Nos restaurantes e redes de fast-food, existe também a extrapolação da cultura da fartura, com ares de competição e exibicionismo. 

Me lembro de Vinícius Garcia, repórter da Jornalismo Júnior. Ele foi até a Panetteria ZN, pioneira em servir a coxinha de 1kg, com o intuito de escrever uma matéria sobre a iguaria. Pergunto a ele sobre a experiência em ter comido tal prato. “Eu já fui com a mentalidade de não participar da competição, porque a minha intenção era, acima de tudo, jornalística.” Ele conta que mesmo sendo uma pessoa que come bastante, a coxinha em questão era um exagero. “Depois de uns 5 minutos, não dava mais. No começo eu consegui comer tranquilamente, mas comecei a ficar enjoado com tanta comida e falei para o garçom que desisti.”  

[Imagem: Panetteria ZN]

O recordista da competição promovida pela padaria conseguiu comer o gigantesco prato em 1 minuto e 36 segundos. O site do estabelecimento dedica uma seção inteira somente para o desafio. Observando os números da competição, menos da metade das pessoas conseguem cumpri-la. O que é feito com o alimento que sobra? Não consegui entrar em contato com a padaria. Vinicius levou a coxinha para casa, mas admite: teve que jogar fora o meio quilo restante. A quantidade não lhe fez bem e não conseguiu comer o prato no dia seguinte. 

Para Flávia Mori, a popularidade dessas promoções e desafios se dá pelo “efeito demonstração”: “As pessoas querem demonstrar o quanto podem fazer, ou o quanto podem gastar. É uma forma de tentar se inserir em determinados grupos sociais, ou de mostrar o quanto são bacanas e legais.” 

O canal do Youtube Corbucci Eats, especializado em desafios envolvendo a ingestão de grandes quantidades de comida, possui mais de 1 milhão de inscritos e cem milhões de visualizações. Dentre os desafios, Gustavo Corbucci também passou pela Panetteria ZN, desafiando-se a comer 3kg de coxinha. A assessoria de imprensa do YouTuber não respondeu às perguntas da reportagem, alegando confidencialidade de algumas informações.

Flávia Mori afirma que essas quantidades calóricas deixam de ser saudáveis quando se tornam um hábito frequente de consumo. Além disso, o perigo é maior quando as crianças são expostas a tais comportamentos: “Elas não possuem um discernimento sobre as consequências que existem no consumo desses alimentos, além de terem menor capacidade de regulação biológica dos seus hábitos.” 

Quanto a isso, a especialista comenta sobre uma pesquisa recente, que demonstra como crianças são suscetíveis às mudanças de tamanho de porção. Isto é, elas não conseguem ajustar corretamente a quantidade de comida que comem. Ainda sobre a pesquisa, Mori constata: quando as crianças se acostumam a ter um consumo calórico maior durante a infância, é mais difícil para elas reduzirem a quantidade. 

Hábitos incentivados por propagandas colaboram com o aumento do nível de obesidade e sobrepeso no Brasil. Segundo o relatório de 2017 da pesquisa Vigitel, realizada pela Secretaria da Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, a obesidade afeta cerca de 18,9% da população brasileira. Comparado com a pesquisa de uma década atrás, o dado evidencia aumento de 56% da população obesa. Adicionalmente, 54% dos brasileiros estão com sobrepeso, segundo o mesmo relatório. 

Gustavo Porpino afirma que a obesidade é um problema de saúde que cada vez mais afeta a classe média e média-baixa da população. “As pessoas dessa faixa de renda consomem muitos alimentos industrializados e poucas frutas e hortaliças.” O conceito da fome oculta, segundo ele, explica tal fenômeno: “não são pessoas que passam fome mas estão em insegurança alimentar moderada por não terem uma dieta balanceada, além de não ter acesso aos nutrientes necessários para levar uma vida ativa e saudável.” 

Falta de conhecimento sobre alimentos. Falta de conhecimento sobre aproveitamento da comida. Falta de conhecimento sobre boas práticas na cozinha. Baixo consumo de frutas, verduras e legumes. Segundo o relatório de atividades da ONG Banco de Alimentos, os quatro fatores citados correspondem a 80% dos problemas identificados nos hábitos alimentares das pessoas entrevistadas. Para Gabriel Monteiro, o maior consumo de alimentos industrializados leva ao distanciamento em relação ao alimento in natura. “Se você perguntar para uma criança da cidade: ‘de onde vem a alface?’, é muito provável que ela vá responder: ‘a alface vem do supermercado’. Ela não consegue vislumbrar que a verdura foi plantada no campo.”

Flávia Mori também acredita que a educação é pilar essencial na construção de hábitos saudáveis de alimentação. Além disso, a pesquisadora considera que a ausência de boa estrutura educacional torna as pessoas reféns de informações falsas e estratégias de comunicação meramente persuasivas. “Tudo está conectado com renda e educação”, afirma. Os dados consolidados da pesquisa Vigitel mostram que pessoas com menor escolaridade são mais suscetíveis a terem sobrepeso. Enquanto que a porcentagem de pessoas com sobrepeso é de 49,6% para o estrato com mais de 12 anos de estudo, o número sobe para 59,7% na faixa de 0 a 8 anos. 

Desperdício e fome: duas contradições

Por mais que o governo federal negue a existência da fome no país, os dados da FAO demonstram o contrário: são mais de 5 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, segundo o relatório da organização. A disparidade de renda, na visão de Flávia Mori, também é uma das principais causas para que a fome seja um problema no país, mesmo com alta taxa de desperdício e crescente aumento na quantidade de pessoas obesas e com sobrepeso. Para ela, trata-se de um ciclo vicioso, que começa com a necessidade de trabalhar desde cedo, aumentando a evasão escolar. A má formação educacional diminui as chances de bons empregos. 

A falta de um bom salário e uma boa educação dificulta o planejamento de uma boa qualidade de vida em uma família. Mori explica que isso leva a duas situações. “A mais grave, quando as pessoas passam fome por sequer conseguirem ter acesso ao sistema de consumo. Quando conseguem, o acesso é precário e é preciso recorrer a produtos industrializados e duráveis”. Segundo ela, “é muito difícil sair dessa armadilha sem melhorar o sistema educacional”.

A melhora na área da educação, segundo Flávia Mori, permite maior autonomia na hora de escolher os melhores hábitos alimentares: “É preciso que saibam o que estão consumindo, ter ciência das consequências do desperdício e do consumo exagerado dos alimentos, o que isso pode trazer para a saúde delas.”

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