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Festival Filmelier no Cinema | ‘Meu Vizinho Adolf’: absurdo, crasso e tocante

Com temas sensíveis, humor sombrio e trama envolvente, 'Meu Vizinho Adolf' se equilibra sobre contradições para produzir crítica e emoção

Basta falar com qualquer maluco jogado por aí e existe uma chance não nula de que ele afirme, honesta e categoricamente, com olhos arregalados e olhar penetrante, que não, Hitler não se suicidou naquele bunker de Berlim em 1945, mas sim fugiu sorrateiramente da Alemanha em direção à América do Sul para viver uma vida arcádica em algum rancho bucólico isolado da Argentina e, finalmente, morrer de velhice. A premissa é, evidentemente, absurda: por mais que, ruído o Terceiro Reich, alguns dos nazistas mais importantes tenham trilhado caminhos assim similares, ao próprio Führer o destino só guardava um suicídio desesperado. A conspiração, apesar de tudo, causa uma estranha intriga e parece ser um bom adubo para a imaginação de alguns que não resistem em se perguntar: “e se?”. “E se ele estivesse vivo, e aqui na minha cidade?”, “e se um homem idoso, canhoto, aspirante a pintor, falante de alemão e com um olhar sinistro bizarramente familiar se mudasse pra minha vizinhança?”, ou até “e se Adolf Hitler fosse meu vizinho?”

É neste meio termo delirante – entre o trauma histórico e a paranóia conspiratória – que a tragicomédia de Leon Prudovsky Meu Vizinho Adolf (My Neighbor Adolf, 2022) se desenrola. O filme conta a história do Sr. Polski (David Hayman), um sobrevivente do holocausto que, enquanto passa uma vida pacata e isolada em uma casa solitária da América do Sul, tem sua paz interrompida quando um homem misterioso se muda para a residência logo ao lado – a única outra da vizinhança. Para ele, bastou um breve vislumbre dos lúgubres olhos azuis de seu vizinho para que uma certeza petrificasse em sua cabeça: o Sr. Herzog (Udo Kier), na realidade, seria ninguém menos que Adolf Hitler. Polski, portanto, se perde em uma bizarra obsessão: investiga, espia e confronta de forma a acumular as evidências necessárias para comprovar que o ditador está vivo e morando na porta ao lado.

A procura de evidências que revelem a real identidade de seu vizinho, Polski o espia da janela com uma câmera [Imagem: Divulgação/Cohen Media Group]

Tal premissa dá espaço para uma trama que constrói e mistura momentos de tensão, desconfiança e suspense de maneira brilhante, elevados ainda mais pela dinâmica impagável entre as duas estrelas do filme. Hayman e Kier encenam um conflito igualmente cômico e angustiante, conduzidos por um roteiro excelente que, cambaleando entre comprovar e desmentir as paranóias do protagonista, mais parece imitar o movimento de um balanço. 

Para o espectador, a desconfiança em relação a identidade do vizinho é sempre presente. O roteiro, no entanto, faz questão de construir uma narrativa que pende de um lado para o outro entre o sim e o não, em um “é, não é, é, não é” desnorteante que, refletido de maneira hilariamente literal em certos diálogos do filme, injeta a paranóia na plateia. O conflito cresce, se estressa, arrefece, respira e tensiona novamente em uma dinâmica que mantém o espectador na ponta do assento e sopra um ar de intriga sobre cada instante do longa.

A narrativa borbulhante é pontuada por uma série de simbolismos que conferem uma profundidade ainda maior para a trama. Figuras como o jogo de xadrez, usado como recurso narrativo de ilustração do conflito, e as rosas negras do Sr. Polski que, claramente ligadas à memória do Holocausto, traçam metaforicamente a trajetória temática do filme, complexificam a trama.

O xadrez é de grande importância na narrativa do filme. Afinal, qual a melhor forma de traduzir visualmente um confronto intelectual entre dois personagens? [Imagem: Divulgação/Cohen Media Group]

O tom do filme é marcado por um humor notavelmente sombrio, que anda na corda bamba entre assuntos extremamente delicados e situações cômicas absurdas. A contradição no cerne do humor é profundamente poderosa: ao conduzir uma trama que se equilibra entre temas muito sensíveis e uma comédia crassa, a narrativa produz, por meio do contraditório, uma forte crítica e um sentimento poderosíssimo que só pode ser fruto de uma imensa confusão emocional.

A crítica do longa é sempre presente e soa como um zumbido incessante em todas as cenas, com uma sensibilidade imensamente necessária. A história toda se constrói sobre a ideia problemática de mitificação da figura histórica de Adolf Hitler. Essa versão do nazista nasceu de centenas de curiosidades, factóides, rumores e fofocas sobre sua vida pessoal e anatomia corporal – algumas delas relembradas no filme, como questões relacionadas a seus animais de estimação ou até o boato de que ele tinha apenas um testículo. Criou-se um mito, uma figura pitoresca discutida unicamente pelas suas excentricidades que, ao focar nas particularidades pessoais, ofusca o fato cabal: Adolf Hitler era um sujeito pertencente e ativo em amplos processos históricos que tiveram efeitos avassaladores, grotescos e profundamente trágicos. Prioriza-se, assim, o rumor de uma suposta fuga de Hitler para a América do Sul sobre os mecanismos históricos que resultaram no Holocausto e que se ramificam e ecoam até os dias atuais. Aqui, o personagem de Udo Kier representa esta versão do ditador, mitificada e criada pelas paranóias do protagonista, que mais parece usar esse personagem e toda aquela situação de forma a lidar com as dores de seu próprio passado.

Este é, afinal, o maior triunfo do filme: por meio de um senso de humor sombrio, do contraditório e de uma relação tortuosa entre dois personagens, o longa explicita os traumas que ainda residem nos corações e nas memórias de muitos direta ou indiretamente afetados por processos históricos devastadores como o Holocausto e o Terceiro Reich. Ao humanizar seus personagens de uma maneira singularmente sensível, Meu Vizinho Adolf conta a história de cicatrizes abertas e pessoas quebradas que, em meio ao absurdo, tentam fazer sentido de todas as suas próprias ruínas.

O filme faz parte do Festival Filmelier no Cinema, confira o trailer:

*Imagem de capa: Divulgação/Cohen Media Group

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