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Conseguimos “otimizar” nossos corpos?

Tecnologia e conhecimento acessíveis levam pessoas a explorarem seus limites físicos e biológicos

Por Bárbara Bigas (barbaraebigas@usp.br)

Tomar um banho gelado às 5h da manhã, ingerir creatina após fazer exercícios físicos e passar 16 horas em jejum. Esses são hábitos que muitas pessoas adotam em sua rotina diária sem se darem conta de que estão seguindo métodos de produtividade comuns no biohacking.

Biohacking é um conjunto de práticas que modificam o corpo de forma artificial, na busca de atingir seu melhor desempenho. Também conhecido como “a biologia do ‘faça você mesmo’”, o biohacking contempla desde leves alterações na rotina, como mudanças na alimentação e técnicas para a melhoria do sono, até medidas mais radicais, envolvendo uso de substâncias químicas, instalação de chips corporais, entre outros.

Adeptos do jejum intermitente (longos períodos sem ingerir alimentos sólidos) substituem refeições por bebidas quentes como café ou chá. [Imagem: Reprodução/Rawpixel]

Em entrevista para o Laboratório, o professor Luli Radfahrer, colunista do Datacracia do Jornal da USP, explica o contexto histórico por trás do biohacking: “Na década de 80, as pessoas começam a mexer um pouco mais no corpo, começam a tomar propriedade dele. Até então, o corpo era uma propriedade social”.

Essa mudança cultural acompanhou o surgimento e a apropriação de tecnologias desenvolvidas para o uso individual como, por exemplo, próteses mecânicas e gadgets que monitoram a qualidade do sono, os batimentos cardíacos, a pressão arterial e sugerem alterações para melhorar o desempenho corporal no dia a dia. Além disso, ela segue uma tendência de estudo da ciência e da medicina por conta própria.

Deyvid Morais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás, explica mais sobre isso: “O outro lado que o biohacking nos apresenta enquanto comunidade científica é o da democratização da ciência”. Mas Morais não descarta que a ciência produzida de forma autônoma apresenta riscos.

Um exemplo disso é Tim Cannon, biohacker norte-americano que inventou um dispositivo chamado Circadia 1.0, acoplado ao seu próprio antebraço. Esse dispositivo faz um check-up de seu corpo, enviando os dados para seu celular. Ao mesmo tempo, o Circadia possui em sua bateria um líquido que pode ser fatal ao vazar. Além disso, a instalação foi feita sem nenhum tipo de anestésico e por uma pessoa sem certificação médica.

Circadia 1.0 instalado no braço de Tim Cannon. No tablet, informações sobre a temperatura corporal de Cannon.  [Imagem: Reprodução/Youtube Canal Motherboard]

Embora o conceito de biohacking seja discutido desde os anos iniciais da década de 2000, um crescimento do uso da palavra “biohacking” em artigos científicos pode ser observado no período de 2009 a 2017, segundo gráfico divulgado pela Scopus.

Também é comum encontrar esse tema sendo debatido em fóruns virtuais e grupos nas redes sociais. [Imagem: Reprodução/Scopus]

Deyvid conta que teve contato com o assunto pelas redes sociais e também no ambiente universitário. Esta era marcada pelo uso massivo das redes ajuda a estabelecer um ideal de rendimento que leva ao desejo de “hackear” a si mesmo: “A soma do imperativo de produtividade, em que estamos inseridos, com a preocupação com a saúde e o bem-estar, aliada aos avanços farmacológicos, discursos neurocientíficos e ao ideal da melhora constante, sem dúvida, fizeram com que o biohacking se popularizasse na sociedade como um todo”.

Áreas do biohacking

O biohacking abrange diversas possibilidades de modificação. A partir do interesse em “explorar os limites e as possibilidades do próprio corpo, da atenção, da cognição”, como comenta Deyvid, uma série de técnicas e métodos são criados e difundidos entre os biohackers

Por se tratar de uma área com múltiplas aplicações, muitas ainda inexploradas, o biohacking se divide entre práticas brandas e extremas, as que oferecem riscos à saúde e as que não oferecem. “Não se pode negar todas as intervenções por causa de algumas intervenções. As práticas mais extremas são aquelas que mais chamam atenção, e, às vezes, a resistência à prática extrema acaba afetando todas as outras”, comenta o professor Luli. 

Os princípios da nutrigenômica, por exemplo, são adotados por biohackers. Essa área estuda como os hábitos alimentares interferem na composição genética de cada pessoa. Ao entender o funcionamento dos nutrientes no corpo, é possível fazer dietas que evitem determinadas doenças e que garantem uma melhor qualidade de vida. 

Outro método bastante popular é o Wim Hof, que consiste em banhar-se com gelo e, para suportar o frio, exercitar a respiração. Parte dessa popularidade se dá pela efetividade que seus adeptos declaram observar em suas rotinas, além de ser possível realizá-lo em casa. A técnica visa a benefícios como adquirir um maior controle e funcionamento do sistema imunológico e melhorar a circulação sanguínea.

Os nootrópicos — também conhecidos como “drogas da inteligência” — são substâncias apreciadas pelos biohackers, embora não se tenha muita noção de como elas agem no organismo humano. Eles são definidos como substâncias que podem causar um melhor desempenho de concentração e produtividade, sem causar efeitos colaterais ou gerar dependência. 

No Brasil, a Ritalina é uma das smart drugs mais procuradas. O medicamento é indicado para tratar o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade e também a narcolepsia. [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]

“Muitos fatores podem levar a um interesse nas práticas de aprimoramento. Quando pensamos em qualquer tipo de otimização do corpo automaticamente temos a ideia de produtividade, de estarmos mais dispostos, menos cansados e tudo isso está muito ligado ao universo do trabalho”, explica Deyvid. 

O que pode acontecer, no entanto, é que, na tentativa de melhorar sua concentração e efetividade nas tarefas, pode-se ter um malefício a longo prazo para o corpo. O professor Luli aponta que, por se tratarem de substâncias químicas, acontece a mistura dessas com a corrente sanguínea, fazendo com que seja mais difícil eliminá-las do corpo caso o efeito desejado não seja alcançado. Além disso, ele destaca que “não se sabe qual a interação medicamentosa” dessas substâncias com o organismo. 

Sem a comprovação científica de que nootrópicos funcionam, o que se observa é que eles podem ser ineficazes a cérebros com funções normais de memória e concentração. Trata-se de “uma solução em busca de um problema”, como explica Luli. 

O cenário ideal para não depender de fármacos é aquele em que as pessoas conseguem se exercitar, ter uma alimentação saudável e cuidar de sua saúde mental adequadamente. Dessa forma, o corpo não precisaria ser modificado para atingir um ideal de otimização que, segundo Deyvid, “coloca nos indivíduos a responsabilização dos seus sucessos e fracassos, em que obter a melhor performance possível não se trata apenas de uma escolha, mas torna-se uma necessidade competitiva nesse sistema de disputas”.

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