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Gaslight: a manipulação psicológica em cena

Último trabalho de Jô Soares, “Gaslight – Uma Relação Tóxica”, denuncia violência psicológica contra a mulher em história de mistério com toques de humor

Informações distorcidas, omitidas e inventadas, que fazem com que a vítima duvide da sua memória e, até mesmo, de sua sanidade. Esse abuso psicológico, que se constrói de forma sutil, tem nome – gaslighting – graças a uma peça de teatro.

É isso o que explica a atriz Kéfera Buchmann, fora da personagem, no início da sessão de Gaslight – Uma Relação Tóxica, em cartaz no teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. Escrita pelo dramaturgo britânico Patrick Hamilton em 1938, a peça retrata um casal que vive uma relação nada saudável em Londres, no século XIX.

Jack (Giovani Tozi) alterna seu comportamento entre momentos de marido bondoso e apaixonado e de homem impaciente e grosseiro, e – como em todo o relacionamento tóxico –, coloca a culpa de sua instabilidade na companheira, Bella (Erica Montanheiro), ao alegar se sentir desgastado com o adoecimento mental da esposa. Ao mesmo tempo, enigmaticamente, objetos da casa começam a sumir e a reaparecer em lugares diferentes, o que contribui para que Bella comece a duvidar da própria sanidade. 

A angústia e o constrangimento da personagem aumentam sempre que seu marido questiona sua saúde mental diante da nova arrumadeira, a jovem e extrovertida Nancy (Kéfera). É  apenas com a chegada do inspetor de polícia Ralf (Leandro Lima), que veio solucionar um curioso mistério e revisitar o passado da casa em que o casal mora, que o desespero de Bella começa a dar lugar a outros sentimentos, e o espectador vê de perto, por meio da atuação brilhante de Erica, o empoderamento da personagem.

A história de suspense com toques de humor é uma das peças de maior sucesso da história da Broadway e foi adaptada duas vezes para o cinema, uma delas em 1944, estrelada por Ingrid Bergman. Foi essa versão que, em 2018, chamou a atenção de Jô Soares durante uma sessão de cinema em sua casa ao lado de Tozi, também idealizador e produtor do espetáculo.

Com a colaboração de Matinas Suzuki Jr e Mauricio Guilherme, Jô assina a tradução, adaptação e direção do texto. Mesmo com a saúde já debilitada, ele trabalhou na montagem da peça no hospital. O ex-humorista, apresentador e escritor, faleceu pouco antes da estreia, sem conseguir ver os atores caracterizados.

Atores caracterizando agradecendo ao final da peça. No cenário, uma teia de 14 metros envolve todo o palco. [Imagem: Reprodução Twitter/@femiliiano]

Como forma de homenagem, elenco e produção resolveram seguir com a apresentação, que estreou na sexta-feira (09), em São Paulo. Apesar da morte, Jô continua presente na peça, não apenas no texto, na montagem, na concepção e no próprio cenário, mas como um farol que guia o prosseguimento do espetáculo.

O elenco está unido e entrosado para fazer jus ao último trabalho do artista. Além de Erica, que representa com maestria uma mulher angustiada, insegura e exausta de duvidar de si mesma – chegando a angustiar o próprio espectador –, outro destaque é Neusa Maria Faro, intérprete da fiel governanta Elizabeth, que traz sororidade e humor para a história. 

O cenário de Marco Lima também se destaca. De maneira delicada, mas também sombria, uma teia de 14 metros, inicialmente pensada por Jô, está por todo o palco, retratando como o gaslighting vai envolvendo a vítima, sutilmente, até o ponto em que se torna difícil se desvencilhar de um relacionamento abusivo.

Com o crescimento do movimento feminista nos últimos anos e a popularização da expressão gaslighting, o texto, de 1938, ainda traz discussões relevantes e cada vez mais presentes para as mulheres. É ao longo da peça, aliás, que se entende porque o termo gaslighting — uma referência a luz de lampião usada na época — foi cunhado para definir esse tipo de manipulação psicológica. 

A peça não é só um entretenimento, mas também um alerta para pessoas que vivem ou já viveram relacionamentos tóxicos. Com certeza, outras mulheres vão se identificar e sentir o alívio e prazer de ver Bella, ao longo dos 90 minutos de apresentação, retomando a confiança e a consciência de si mesma. A peça terminou com homenagem a Jô Soares e gritos de “Viva o Gordo”.

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