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‘Anna Kariênina’, obra sobre amor e traição de Tolstói I Resenha

O clássico de Tolstói aborda a vida de Anna, que quebra as regras da alta sociedade russa ao abandonar seu casamento infeliz

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. É assim que se inicia Anna Kariênina (Companhia das Letras, 2017), traduzida do russo por Rubens Figueiredo. O livro do celebrado autor russo Liev Tolstói comemora 145 anos desde seu lançamento original, em 1877.

A história do livro de mais de 800 páginas abarca inúmeros personagens, várias localidades do território russo e acontecimentos históricos ao decorrer de anos. Anna Arcadiévna Kariênina, casada com um funcionário público de sucesso, é chamada à casa de seu irmão Oblónski, em Moscou, para resolver um conflito marital. É lá que conhece o conde Aleksei Vrónski, militar jovem, rico e belo que fazia corte à cunhada de Oblónski. Após uma noite de dança em um baile de sociedade, Vrónski e Anna ficam obcecados um pelo outro. 

 

A adaptação do livro por Joe Wright (2012) retratou a cena da valsa entre Anna e Vrónski de maneira idílica, sensual e fantasiosa. 

 

Escrito entre 1873 e 1877, o livro nos leva à Rússia Imperial e, mais especificamente, à sua alta sociedade. Cercados de nobres proprietários de terras, funcionários do governo do tsar, condes, princesas e afins, Tolstói mostra o que faz uma mulher que decide seguir seu coração em uma sociedade crítica e predisposta a julgamentos prévios, em especial ao gênero feminino. 

O leitor, de início, fica confuso com os títulos, com os longos e complexos nomes, e com os costumes da época – mas é capaz de se adaptar rapidamente e todas as sutilezas desse mundo conseguem ser compreendidas por meio da narrativa de Tolstói. Um suspiro exacerbado ou no momento errado pode parecer algo mundano, mas, depois de conviver com a sociedade de Anna, é possível perceber o absurdo que pode estar velado neste pequeno e sugestivo ato. 

O livro aborda, também, questões históricas e filosóficas, como a questão eslava, a política e a burocracia da Rússia Imperial, a educação feminina e, principalmente, a religiosidade e a vida dos camponeses. Tolstói passa várias páginas expondo ruminações desses temas por meio de diálogos entre seus personagens. Esses pensamentos, detalhadamente examinados, muitas vezes são abstratos e cansativos.

Anna Kariênina é escrito por meio do fluxo de consciência, recurso literário no qual os pensamentos, sentimentos e intimidades dos personagens são expressos com grande detalhe, mesmo a partir de uma narrativa de terceira pessoa. São exploradas todas as conflitantes emoções que nossos personagens sofrem para que possamos sofrer junto a eles.

Por isso, pode-se dizer que a obra não é focada na ação, mas sim na complexidade de seus personagens. Ao fim, o leitor os conhece tão intimamente que os chama por seus apelidos – Kóstia, Stiva, Kitty, Dolly, são pessoas com quem convivemos por um longo mas gratificante livro.

Personalidades como Aleksei Kariênin, marido de Anna, e Konstantin Liévin, amigo de Oblónski, têm seus pensamentos explicitados em tamanha minúcia que tornam a leitura pesada. Quando Kariênin decide confrontar Anna após uma noite dançando com Vrónski, são dedicadas mais páginas à preparação de Kariênin, refletindo no que ia dizer e como, do que sua conversa com a esposa. É quase como se Tolstói pensasse impossível chegar a conclusões e decidir senão pela retórica. Soa rígido e antinatural, mesmo que seja uma tentativa de especificar  quão seco é o marido de Anna. 

Em compensação, existem diálogos tão sutis e realísticos que podem fazer o leitor se sentir na casa desses aristocratas de um século diferente e que nada tem a ver conosco, compartilhando com eles os mesmos sentimentos e angústias. Há ações que, a princípio, não evoluem para o enredo, mas mostram a ternura da qual a escrita de Tolstói é capaz. Esse contraste entre naturalidade e artificialidade faz os momentos de suavidade e de afeto serem ainda mais emocionantes. 

O enlouquecimento de Anna também é comovente, mas de outra forma. Os ciúmes, a obsessão, a vergonha de Anna  o coração acelera e se passa de um sentimento como o amor para o ódio em uma só linha. O literato Matthew Arnold expressou algo que bem descreve a emoção que o livro causa: “não se deve tomar Anna Kariênina como uma arte: deve-se tomar como um fragmento de vida”. 

 

Na pintura, Anna é retratada como uma mulher jovem com um vestido longo e de gola alta, vermelho com detalhes em preto no centro.
Pintura de Aleksei Mikhailovich Kolesov (1834-1902) retratando Anna Arcadiévna. A pintura, feita oito anos após o lançamento do livro, encontra-se no Museu Nacional de Varsóvia. [Imagem: Reprodução/Meisterdrucke]

 

Anna é sofrida e confusa, e é difícil não sentir empatia por ela. Ao mesmo tempo, é leviana e superficial, e não é claro se, ao fim do dia, Tolstói quer que o leitor empatize com ela ou não. Seria uma heroína ou anti-heroína? Mesmo com momentos de carisma e demonstrando amor intenso, Anna consegue mostrar o pior do que é capaz escolhe abandonar seu filho, é indiferente à sua filha, pensa em seduzir Liévin e tem ciúmes obsessivos.

Vrónski também é explorado em detalhe na obra, e é igualmente difícil decidir se Tolstói tenta fazê-lo um mocinho ou um vilão. Obviamente apaixonado por Anna, não é claro se isso é um narcisismo da parte do conde. Mesquinho, superficial e frívolo, ele consegue encarnar tanto o amante apaixonado, quanto o cruel. 

A obra tem grande relevância histórica por se tratar de alguns dos últimos anos do Império Russo. A questão dos trabalhadores da Rússia foi muito explorada; Liévin se dedica a entender as nuances do cenário do campo, o atraso da agricultura e a industrialização. Não se pode, entretanto, deixar despercebido o elitismo de Tolstói, que retrata os camponeses como pessoas com pensamento incompleto. Isso é evidente em cenas em que as pessoas “comuns” interagem com a elite financeira, intelectual e cultural, e os primeiros não conseguem se integrar sem o intermédio dos aristocratas. 

A última parte foca muito em questões filosóficas, em específico o propósito de Liévin, e falha ao não mostrar o desfecho dos outros personagens do livro. Seria interessante ver como os personagens reagiram ao acontecimento ao final da sétima parte e as consequências maiores desse evento na sociedade russa. 

As reflexões de Liévin sobre religiosidade criam um paradoxo, já que é difícil distinguir se Tolstói aprova religião ou não. Se por um lado temos personagens com uma fé exacerbada representada como caricata e ridícula, como Lídia Ivanóvna e Aleksei Kariênin, a fé é, para Liévin, sua salvação, e é com ela que se tem a descoberta de seu propósito, após anos de ateísmo. 

O clássico emblemático de Tolstói continua presente em várias obras na atualidade. Android Karenina (Quirk Books, 2010), um romance steampunk, parodia a história; A insustentável leveza do ser (Companhia das Letras, 2017), de Milan Kundera traz o tema de adultério e referencia diretamente aos personagens. O texto já rendeu várias adaptações ao cinema, como um filme de 1935 e um de 1997, além de uma recente adaptação com Keira Knightley como Anna, e uma adaptação com os acontecimentos após o fim do livro pela perspectiva de Vrónski.

 

A versão de Anna Karenina de 1935 tem como principal destaque a atuação de Greta Garbo, no papel de Anna Kariênina, e que contracena com Fredric March, que traz vida ao conde Vrónski. 

 

Anna Karenina de 2012 é dirigido por Joe Wright e, mesmo sem conseguir captar as delicadezas da narrativa de Tolstói e o fluxo de consciência dos personagens, consegue transmitir uma história sensível e de aspecto teatral. Talvez seja interessante tratá-lo mais como um reboot do que um remake, por não ser uma adaptação muito fidedigna mas ainda trazendo novos elementos que tornam a história riquíssima. 

 

Imagem de capa: Lara Paiva

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