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A ciência em ‘Wall-E’

Ao assistirmos alguns filmes de animação é possível refletirmos sobre como o uso de conceitos científicos é usado. Mas como será que eles são mostrados?

Wall-E é um filme da Walt Disney Pictures lançado em 2008, do diretor Andrew Stanton. A história do filme se passa em 2700, numa realidade em que a Terra foi tomada pelo lixo e os seres humanos vivem em um cruzeiro espacial, esperando robôs limparem o planeta para que possam retornar. Neste texto, o Laboratório analisa os principais temas explorados na obra, com o professor do Departamento de Botânica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Luiz Eduardo Del-Bem, e o físico pelo Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Murilo Henrique Ferreira Guedes.

 

O colapso da Terra em Wall-E

A primeira coisa a qual somos apresentados no filme é uma Terra tomada pelo lixo e que ficou inabitável. O robô Wall-E é um dos que restou de um grupo de máquinas inteligentes que tinha como missão compactar o lixo e limpar o planeta.

 

Imagem do filme com Wall-E em meio ao lixo
Wall-E na pilha de lixos [Imagem: Reprodução/Walt Disney Studios Motion Pictures]

 

O lixo é um grande problema da nossa sociedade atual. De acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil (2020), cada brasileiro produz cerca de 379,2 kg de lixo por ano, ou seja, mais de 1kg por dia. Se observamos os índices apenas da Região Sudeste do país, onde se encontram as duas cidades mais populosas (Rio de Janeiro e São Paulo) esses valores atingem a marca de 450 kg por pessoa ao ano.

Segundo levantamento de 2019 da empresa Verisk Maplecroft, especializada em risco global, o mundo produz em média 2,1 bilhões de toneladas de lixo, sendo que apenas 16% desses resíduos são reciclados. Os Estados Unidos lideram a lista como o país que mais gera lixo doméstico (alimentos descartados, plásticos e dejetos diversos); 773 kg por pessoa ao ano, mais que o dobro da taxa do Brasil.

Mas será que o cenário do filme é possível fora das telas? O professor Luiz afirma que isso não só pode acontecer, como também já aconteceu: “Se olharmos para a história geológica do planeta, em diversos momentos tivemos processos de extinção em massa e, se pudéssemos voltar para esse período, veríamos um planeta quase estéril”, ou seja, um local em que a presença dos seres vivos (animais e plantas) é praticamente inexistente, com uma atmosfera bem pífia.

O professor ainda complementa que a atividade humana pode introduzir no planeta uma série de moléculas e desequilibrar os ciclos biológicos — processos naturais de reciclagem de um elemento químico dentro do meio, como o ciclo do carbono, hidrogênio e nitrogênio —, o que pode mudar radicalmente o meio ambiente. Um exemplo é a presença excessiva de gás carbônico na atmosfera, oriundo da combustão e emitido por veículos automotores, que promove o aquecimento global.

Existem alguns lugares que já estão sendo tomados pelo lixo, como Gana, que recebeu o apelido de “cemitério de eletrônicos”, devido ao grande número de lixo eletrônico que é descartado lá por Estados Unidos e Europa; e Bali, na Indonésia, que tem tido suas praias tomadas por resíduos plásticos. Ambos têm sofrido com alterações em seus ecossistemas. Em Gana, o solo já conta com a presença de mercúrio, chumbo, cádmio e arsênico, metais tóxicos usados em eletrônicos e as pessoas que trabalham lá, acabam por inalar essas toxinas. Em Bali, assim como em muitos outros locais, a vida marinha acaba sendo afetada, ao ingerir pedaços de plástico, levando à morte várias espécies.

 

Cemitério eletrônico em Gana
Cemitério Eletrônico em Gana. [Imagem: Água, vida & cia/Fernando José de Sousa]

 

Mas nem todo problema ecológico pode ser facilmente visto a olho nu. A onipresença dos microplásticos em oceanos e praias preocupa pesquisadores sobre a interferência desse lixo na dinâmica da vida marinha e terrestres, mesmo que por partículas bem pequenas, já que elas são absorvidas pelos animais e ficam na cadeia alimentar por um longo período.

Além do acúmulo do lixo, a atividade humana também pode alterar a constituição da atmosfera, dado que ela é construída pela vida que tem no planeta. Por exemplo, antes da evolução proporcionar a fotossíntese oxigênica — processo realizado por plantas e cianobactérias, que absorve o CO2 da atmosfera e devolve O2 —, não havia oxigênio em nossa atmosfera, o que mostra como a vida presente na Terra alterou a constituição da atmosfera e promoveu um ambiente adequado para que os seres humanos pudessem se desenvolver.

Por isso, a questão da emissão dos Gases do Efeito Estufa (GEEs) é muita séria, já que pode promover uma alteração na constituição da atmosfera que vivemos e, com isso, no tipo de vida que se desenvolve aqui. “Por exemplo, podem ocorrer colapsos de grandes florestas, colocando ainda mais CO2 no ar ou a emissão de metano (CH4) descontrolada devido ao degelo da Groenlândia”, afirma Luiz, o que mudaria a composição da atmosfera que vivemos.

 

Wall-E observa uma barata
Wall-E e a baratinha. [Imagem: Reprodução/Walt Disney Studios Motion Pictures]

 

Embora, no filme, a ambientação seja exclusiva nos Estados Unidos, a Terra toda foi afetada. Isso porque a solução para o problema foi eles irem para o espaço, o que mostra que as outras áreas do planeta também estavam comprometidas. É fácil entender esse efeito em cadeia, pois todos os ecossistemas são conectados, por exemplo, parte da areia que é encontrada na Amazônia, vem do Saara e é responsável por fertilizar as terras amazônicas, contribuindo para a manutenção da Floresta. “Se pensarmos num colapso global de ecossistemas, como aconteceu quando os dinossauros foram extintos, há uma mudança completa nos ciclos de todos os elementos e até as correntes oceânicas podem mudar”, afirma Luiz. As correntes marítimas são fenômenos importantes da natureza, pois auxiliam na regulagem da temperatura e da umidade dos locais. Por isso, alterações em seu funcionamento são tão prejudiciais aos ecossistemas.

 

Cruzeiro espacial, robôs e inteligência artificial

A solução no filme é levar as pessoas para habitarem um cruzeiro espacial e — pelo que é mostrado — só existe esse cruzeiro e as pessoas que estão ali. Com isso, se pensarmos que, em 2021, a população mundial é de mais de 7 bilhões, em 2105 (ano aproximado que foi feita a evacuação das pessoas da Terra), a população seria bem maior, logo muitas vidas humanas foram perdidas por causa do desastre ambiental que ocorreu na Terra.                               

Passam-se então 700 anos, as pessoas que vivem agora na nave não fazem ideia do que é a Terra e como era a vida lá. Mas de que forma uma nave poderia se manter abastecida durante todo esse período? Para Murilo, uma das possibilidades é o uso da luz solar: “assumindo que os motores da nave sejam elétricos, bem como tudo presente nela, poderíamos considerar como plausível que a fonte seja energia solar, convertida em elétrica por placas fotovoltaicas”, afirma. Além disso, temos o problema dos produtos da alimentação humana e da reposição de peças para os robôs, que podem ser fabricados na própria nave ou sustentados por uma nave secundária que periodicamente abastece o cruzeiro espacial.

O professor Luiz acredita que, pelo que percebemos em Wall-E, não haveria impossibilidade para que o nosso organismo biológico conseguisse viver fora da Terra. “Hoje haveria implicações devido à falta de gravidade, porque nós somos seres que evoluíram com a gravidade do planeta e somos biologicamente adaptados a isso. Com uma aceleração tão grande do conhecimento, como temos visto, pode ser que consigamos fazer edições em nosso genoma, para nos adaptarmos melhor. Se pensarmos no cenário real, provavelmente não seríamos mais biologicamente como somos hoje”, conclui.

O genoma é o conjunto de genes que formam uma determinada espécie. No caso do genoma humano, ele é constituído por DNA. A engenharia genética já é capaz de fazer alterações em alguns genes para corrigir determinados problemas de saúde que um indivíduo tenha. É uma das áreas mais crescentes da ciência, o que nos leva a crer que possa ser possível a realização de uma edição em nosso genoma para nos adaptarmos em um ambiente diferente do nosso. 

Outra questão interessante é pensarmos no campo da física, em relação ao tempo que decorreu na Terra e na nave. De acordo com a Teoria da Relatividade, que começa com Galileu Galilei, mas ganha força com Isaac Newton, o tempo e o espaço são mutáveis e quando um sofre distorção, o outro também sofre. “A massa deforma o espaço criando o campo gravitacional. Viajar em altas velocidades também causa distorções no espaço e, consequentemente, no tempo. O curioso é que os viajantes não precisam necessariamente estar em altas velocidades para causar distorções temporais, é o que Albert Einstein propõe a partir de um fator gama (fator de Lorentz) em sua reflexão. Contudo, quanto maior a velocidade, maior será a anomalia temporal e distorção espacial”, explica Murilo.

Por isso, ao pensarmos na situação do filme, ele afirma que, se a gravidade na nave fosse simulada de modo a ser equivalente à da Terra e ela se mantivesse em repouso, o tempo passaria de modo semelhante a qualquer coisa que estivesse em solo terrestre. Mas, se a nave que hospeda as pessoas estivesse em movimento e longe do planeta, teríamos condições para comparar o tempo passado por cada sistema e afirmar que são diferentes. Logo, pelo que vemos no filme temos a impressão de que o cruzeiro espacial se mantém em repouso e, por isso, provavelmente o tempo decorrido foi o mesmo no nosso planeta e na nave.

No cruzeiro espacial, percebemos que a vida das pessoas depende dos robôs e da automatização: Wall-E, que está limpando a Terra; a EVA que precisa encontrar uma planta; as cadeiras flutuantes que carregam as pessoas e a inteligência artificial que controla a nave, são alguns dos exemplos mostrados. E uma das consequências disso é a inutilidade da vida das pessoas, pois elas não precisam fazer nada, apenas usufruem dos serviços prestados pelos robôs, o que as leva a desenvolverem problemas de saúde, como o sedentarismo e a obesidade. Observamos isso no filme, com as fotos dos pilotos do cruzeiro espacial, conforme o tempo passou e a nave se tornou mais tecnológica, eles se tornaram obesos, e também com os bebês, que desde nascença, já se encontravam com sobrepeso. 

Além disso, eles vivem em um mundo alienado uns dos outros — muitos nunca tinham se visto pessoalmente e seus relacionamentos se davam apenas pelo meio digital. A alta tecnologia da nave proporciona aos passageiros um sofisticado serviço de telecomunicações, em que com um simples movimento, os usuários podem falar com outros tripulantes por telas projetadas no ar por suas cadeiras flutuantes — tecnologia, hoje, não tão futurista assim. 

A empresa norte-americana IKIN já trabalha na criação de um dispositivo holográfico para reproduzir imagens em três dimensões adaptadas a qualquer celular. Nessa área, pesquisadores da Universidade de Glasgow, na Escócia, desenvolveram a ‘Aerohaptics’, capaz de criar a sensação de toque físico pela interação com projeções holográficas. 

A forma que o longa mostra isso pode ser entendida como uma crítica feita à alienação pelas redes sociais e pelo mundo virtual, algo que já acontece nos dias de hoje: namoros digitais, isolamento e ansiedade social — e, com a chegada do metaverso, mundo virtual que replica a realidade através de dispositivos digitais, o cenário de Wall-E pode não estar tão no mundo da ficção. 

 

Habitantes do cruzeiro espacial usufruindo das tecnologias da nave
Habitantes do cruzeiro espacial. [Imagem: Reprodução/Walt Disney Studios Motion Pictures]

 

O filme mostra um possível mundo que nos espera com grandes avanços tecnológicos e que provavelmente será motivo de muita discussão nos próximos anos. “Inteligência artificial, robotização e nanotecnologia, diversas dessas tecnologias podem criar um cenário futuro de produção totalmente distinto do que a gente conheceu até hoje. Não sabemos o que vai acontecer daqui alguns anos, certamente muitas coisas vão avançar, pode ser que todo trabalho manual humano seja substituído por robotização. O que a gente entende hoje como relações de trabalho será muito afetado pelo desenvolvimento da ciência porque, querendo ou não, as máquinas são mais eficientes, são mais precisas e são mais baratas. Isso vai certamente causar um impacto violento na sociedade”, afirma Luiz.

Murilo também complementa que é importante diferenciarmos os tipos de tecnologia: “A inteligência artificial é uma área de estudos das ciências da computação, comunicação e informação, que busca criar algoritmos que simulam comportamentos, reproduzem padrões e não tomam decisões por si, mas que trazem um compilado de causa e consequência dentro da sua programação, diferentemente da automatização que se trata de um sistema construído com início e fim definidos pelo usuário e ‘refém’ da vontade dele”. Ele ainda reforça que a humanidade procura por processos rápidos, práticos e facilitados e, por isso, a busca pela automatização tem sido grande. “Não são campos tão distintos e distantes, mas com focos diferentes. Contudo, precisamos caminhar um pouco mais para alcançar o cruzeiro espacial autossustentável e fechado com um sistema próprio de navegação”, finaliza.

 

Recolonização do Ecossistema

O símbolo de que eles poderiam retornar à Terra era a presença de uma planta em solo terrestre, pois isso representaria que o ecossistema não é mais tóxico e os seres humanos poderiam se reestabelecer no planeta. 

 

Wall-E encontrando uma planta na Terra
Wall-E e a plantinha. [Imagem: Reprodução/Walt Disney Studios Motion Pictures]

 

Certamente uma plantinha não seria suficiente para indicar que habitar a Terra novamente era seguro. O professor Luiz explica que como algumas plantas são extremófilas, ou seja, são capazes de sobreviver em condições extremas: “voltar só por causa de uma plantinha isolada seria precipitado. Poderíamos chegar aqui e encontrar um planeta que tem meia dúzia de plantinhas extremófilas e teríamos muita dificuldade em manusear”. Mas a ideia do filme com a planta é mostrar a importância da natureza e a necessidade de preservá-la para que a Terra continue sendo o nosso lar.

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