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Bitcoin e blockchain: passos largos para o futuro do mundo financeiro

Entenda sobre essas novas tecnologias que pretendem revolucionar as relações financeiras mundo afora

“O que é uma tecnologia?”. Essa é a pergunta que Valter Rabelo, analista do mercado de criptoativos na empresa Empiricus, considera ideal para começar a entender melhor o novo universo financeiro do qual o Bitcoin se afirmou como a peça principal. Pela etimologia da palavra, o termo “tecnologia” vem do grego “téchne”, que significa arte, técnica ou método, e “logia”, o estudo de algo. Logo, a tecnologia pode ser definida como o estudo do método. O estudo de como se faz algo. 

Em entrevista ao Laboratório, Valter explica: “Dinheiro nada mais é do que uma tecnologia de transmissão de valor, e, ao longo da história, usamos como moeda diversas coisas. Cacau, cevada, sal, ouro e prata: tudo isso já foi moeda de troca um dia”. Em todos os casos, o valor dos objetos usados como moeda têm seu lastro – em última instância, baseado na confiança das pessoas de que aquilo servirá como moeda de troca em outras ocasiões futuras. Ou seja, que manterá seu valor. 

especialista em Bitcoin
[Imagem: Reprodução/Valter Rabelo]
As moedas que conhecemos, como dólar e real, são moedas fiduciárias. Elas são controladas pelas autoridades centrais de cada território no qual atuam e não têm seu valor lastreado em nenhum metal ou matéria-prima. A grosso modo, seu valor é baseado unicamente na confiança que as pessoas e empresas depositam naquela moeda e nas autoridades que a controlam. 

Dentro do mundo das finanças, pode-se dizer que a palavra-chave é “confiança”. É por meio dela que, principalmente nos dias de hoje, se garante o valor do dinheiro. Se um país se mantém com um cenário político e econômico estável, o natural é que sua moeda ganhe valor. Mas, se por alguma razão, uma nação passa por alguma crise ou situação de instabilidade, sua moeda tende a “cair”. A despeito da complexidade da economia global, todas aquelas oscilações de valores em gráficos que vemos sobre as moedas mundo afora remetem, resumidamente, à confiança que determinado governo inspira no grande mercado mundial. 

E o que acontece quando ocorre um colapso geral na economia do mundo? Algo tão forte que termine por criar uma desconfiança generalizada? Há pouco menos de um século, no dia 24 de outubro de 1929, quebrava a bolsa de Nova York. A queda da bolsa dos ianques levou consigo a economia global inteira, o que criou um ambiente de caos e incerteza sobre o futuro. 

 

Multidões entram em pânico no distrito de Wall Street, em Manhattan, devido ao grande volume de negócios na bolsa de valores de Nova York. [Imagem: Reprodução/Wikipedia Commons]

 

Em 2008, a crise gerada por uma bolha imobiliária – que teve início também nos Estados Unidos –, chegou a quebrar bancos como o Lehman Brothers, fundado em 1850. A situação se alastrou pelo mundo inteiro, danificando a renda de milhões de pessoas afetadas pela inflação generalizada. Mais uma vez, o mundo se via incerto sobre o futuro da economia global e assistia o valor das moedas nacionais ser corroído junto à confiança dos governos e bancos centrais. 

Nesses momentos, os agentes econômicos buscam se proteger das enormes quedas de valor que sofrem as moedas, buscando refúgio para seus capitais em outras reservas de valor que consideram mais seguras. Foi dentro desse contexto de crise que surgiu, pela primeira vez, o Bitcoin. No dia 31 de outubro de 2008, pouco mais de um mês após a falência do banco Lehman Brothers, era publicado pela primeira vez o whitepaper com o título: “Bitcoin, um sistema de dinheiro eletrônico Peer to Peer”. 

 

O que é o Bitcoin? 

Sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, o autor do artigo, que até o momento se manteve anônimo, explica em detalhes o que seria o Bitcoin e quais eram os seus objetivos ao lançar a nova tecnologia. O documento destaca a necessidade de superar o modelo atual de transações financeiras, que é dependente de entidades centrais intermediárias para fazer a ligação entre os dois pretendentes de uma transação. Para atender a essa necessidade, a rede de Bitcoin contaria com algumas características principais. 

 

Descentralização 

A rede do Bitcoin se propõe como uma rede independente que não precisa de nenhuma autoridade central para operar. Nessa rede, bancos e servidores centrais são completamente descartáveis, e todas as funções são divididas entre as máquinas que a integram. Isso só é possível por conta do sistema de rede P2P.

Esse sistema funciona conectando diversos computadores que formam uma rede descentralizada de compartilhamento de dados e serviços. Em uma rede tradicional (ou seja, com um servidor central), seu computador opera como um cliente e o servidor como um provedor de serviços. Assim, quando você deseja fazer um download de algum filme, acessar suas redes sociais ou fazer uma simples busca no Google, seu computador está fazendo um pedido a esse servidor, e ele está te provendo um serviço. 

Em uma rede P2P, esse servidor central não existe. O seu computador vai desempenhar ao mesmo tempo a função de servidor e cliente. Dessa forma, sempre que alguém da rede precisar de algum dado ou serviço que você pode fornecer, seu computador servirá como servidor. E quando você precisar de algo, você irá acionar um motor de busca que irá vasculhar as máquinas da rede atrás do que você solicitou, podendo coletar cada “peça” necessária do arquivo solicitado em diferentes computadores. 

Uma das vantagens desse sistema é que mesmo que uma das máquinas da rede seja desconectada, as outras podem continuar fazendo o serviço solicitado. Dessa forma, os servidores P2P costumam funcionar em tempo integral e com riscos mínimos de queda no servidor. Desse modo, você raramente se depara com notificações como “falha no servidor” ou “serviço fora do ar”, pois sempre haverão máquinas operando para suprir possíveis falhas.

Esse modelo de sistema combina perfeitamente com o propósito do Bitcoin. Através do sistema P2P, os participantes da rede podem solicitar e fazer transações financeiras sem a necessidade de um banco ou qualquer agente intermediador, precisando apenas de um computador conectado à internet. 

 

Segurança 

A rede de transações do Bitcoin é praticamente inviolável. Essa segurança é garantida por um sistema criptográfico de armazenamento de dados chamado Blockchain. Sobre o sistema, o professor Ronnie Paskin, pesquisador do Laboratório de Engenharia de Software da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), explica: “Um sistema  Blockchain funciona como um ‘Livro Razão’ distribuído e público, ao qual todos os integrantes da rede têm acesso. O funcionamento do sistema exige que todas as partes da rede tenha um consenso sobre o histórico de transações”. 

[Imagem: Reprodução/Ronnie Paskim]
Em um sistema Blockchain, todos os “nós” (computadores integrantes da rede) têm uma cópia de todo o histórico de transações já validadas pela rede em ordem cronológica. Esse histórico de transações é público e pode ser consultado por qualquer pessoa. Digamos que você queira me transferir 10 Bitcoins. Eles deverão estar guardados em uma carteira digital, e essa carteira será vinculada uma chave pública e uma privada. A chave pública poderá ser utilizada por qualquer pessoa que queira consultar o histórico de transações relacionadas àquela carteira. Já a chave privada é uma chave que apenas você, dono da carteira, tem acesso – e serve para autorizar suas transações. Desta forma, quando você lançar o pedido de transferência ao sistema, automaticamente um nó irá registrar a data, a hora e o valor exato da transferência, assim como o seu destinatário e tudo isso estará visível para toda a rede na sua chave pública.

Os nós, além de armazenarem todo o histórico do Bitcoin, registram novas transações. Esses computadores são todos conectados entre si, de forma que sempre que algo é registrado em um deles, os outros recebem a mesma informação logo após. 

Após registradas pelos nós, as informações da transferência que você quer me fazer serão organizadas em formato de blocos. Cada um desses blocos informacionais será inserido em ordem cronológica dentro de uma extensa cadeia de transações anteriores, e daí vem o nome Blockchain (do inglês, em livre tradução, “cadeia de blocos”) . Para que um bloco seja formado, é preciso que um código criptográfico seja quebrado, revelando assim uma assinatura única que servirá como um cadeado, ligando um bloco a outro. À essa assinatura se dá o nome de hash, e ela será inserida ao final de cada bloco, de forma que o próximo hash encontrado levará em conta o conteúdo de todos os anteriores. A sua transferência só será efetivada quando o hash do bloco em que ela se localiza for encontrado e inserido na Blockchain, o que pode demorar cerca de 15 a 20 minutos. 

Após inserido na Blockchain, torna-se praticamente impossível alterar ou deletar o bloco. Isso porque, como explica o entrevistado Ronnie Paskin, os hash´s são interligados, para que algum agente alterasse ou deletasse um dos blocos, seria necessário alterar todo o histórico precedente ou posterior ao bloco que se deseja mudar. “Para cumprir tal tarefa, o agente ou grupo de agentes deve concentrar um poder computacional consideravelmente maior que o da rede contribuidora que descriptografa os hash´s”, explica o professor. Considerando o tamanho do atual mercado de Bitcoin, que conta com um investimento avaliado em mais de 1 trilhão de dólares, pode-se considerar que atividades fraudulentas nessa rede, que implicariam na alteração de muitos hash´s em sequência, são extremamente improváveis. 

 

Taxa mínima e anonimato 

Os últimos pilares que sustentam a tese por trás do Bitcoin são as minúsculas taxas de transação e a proteção da identidade do usuário. As transferências feitas diretamente na blockchain do Bitcoin custam uma taxa muito pequena. O valor dessa taxa é revertido para os mineradores, que são as pessoas que disponibilizam seus computadores para sustentar a rede e fazer todo o trabalho criptográfico de desvendar as hash’s. Essa taxa varia de valor de acordo com o congestionamento da rede. Quanto mais pessoas adentram o mercado solicitando transações, mais complicado fica para os mineradores montarem os blocos e, então, o valor da taxa aumenta, funcionando como um incentivo para que os mineiradores continuem com suas funções.  Apesar do aumento das taxas nesses períodos de maior congestionamento, elas continuam sendo irrisórias para os que executam as transferências. A exemplo disso, as pessoas estão movimentando cerca de 5 bilhões de reais e pagando uma taxa de menos de 40 dólares pela transação.

Outro fator igualmente importante é o anonimato quase completo que a rede oferece. Apesar da transparência, que torna todas as transações públicas mostrando os valores enviados de uma carteira a outra, o sistema não disponibiliza nenhum dado pessoal sobre o dono da carteira digital que executa uma transferência. O serviço oferece uma proteção de identidade muito atrativa para diversos perfis de investidores. Porém, esse anonimato só é desfrutado plenamente por aqueles que optaram por operar suas criptos a partir de carteiras independentes. Ou seja, sem a intermediação de uma corretora como a Binance, por exemplo. Essas corretoras têm como objetivo facilitar o contato com o mundo das criptomoedas em geral, servindo como uma espécie de mercado onde você compra e vende seus ativos sem muito trabalho. Contudo, ao se cadastrar em uma dessas corretoras, é necessário o fornecimento de dados pessoais que estarão vinculados na sua conta e sob domínio da entidade escolhida. O anonimato prometido inicialmente já não existe mais ao se operar dentro de uma dessas plataformas. 

 

Objetivo alcançado? 

Ao criar o Bitcoin, Nakamoto tinha o claro objetivo de superar o sistema financeiro como conhecemos hoje. Para os seus apoiadores, criptomoedas não só já são uma forma de dinheiro hoje como também seriam o futuro das finanças. Os grupos mais entusiastas das ideias de Nakamoto acreditam que o cerne da criação do Bitcoin está no conceito de liberdade exposta pelo autor. Na visão desse grupo, a descentralização do sistema tira o poder das mãos de grandes corporações e autoridades governamentais e o joga no colo do povo. “É um sistema que nunca fica off-line e funciona igualmente tanto para uma pessoa comum quanto para o Elon Musk”, diz Pedro Rodrigues, estudante de engenharia da computação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em entrevista ao Laboratório. Quem também compartilha dessa opinião é o Valter Rabelo: “As criptomoedas são uma tecnologia extremamente igualitária. Não importa quem você seja: apenas com informação e conexão à internet, você pode interagir com um sistema que pode te oferecer autonomia e lhe dar uma condição financeira melhor”.  

[Imagem: Reprodução/Edemilson Paraná]
Nesse debate, há quem discorde dessas visões. Edemilson Paraná, autor do livro “Bitcoin: A utopia tecnocrática do dinheiro apolítico”, argumenta que o Bitcoin não é nem pode ser considerado dinheiro. “O dinheiro tem que cumprir três funções básicas: ser meio de troca e pagamento; unidade de compra e reserva de valor. O Bitcoin falha nas três funções básicas do dinheiro, porque ele é extremamente volátil, justamente por não estar vinculado a nenhum poder político e social”. 

Edemilson considera que o Bitcoin, como qualquer outra criptomoeda totalmente desvinculada de uma entidade reguladora, é estruturalmente inviável, do ponto de vista econômico, como forma de moeda. “Quanto mais uma moeda é procurada como ativo de especulação, menos será utilizada como fins propriamente monetários. O Bitcoin é procurado majoritariamente como um meio especulativo, portanto, ele é naturalmente inviável como moeda”, completa. 

Sobre o caráter volátil do Bitcoin, Valter argumenta que trata-se de uma característica temporária. “O Bitcoin será cada vez menos volátil à medida que as pessoas o adotarem por conta do seu valor inerente. Esse valor é baseado em tecnologia e no seu uso prático”. Edemilson diz que o Bitcoin, apesar de não se constituir como uma alternativa viável, trouxe consigo modelos aproveitáveis para o futuro. Ele afirma que as tecnologias expostas pelo projeto, como os sistemas Blockchain,  podem ser integradas às economias atuais e que já existem propostas em curso nesse sentido. 

Na questão do igualitarismo dentro do mundo cripto, Edemilson mais uma vez vai contra a interpretação dos apoiadores do projeto de Nakamoto. Para ele, a comunidade do Bitcoin apresenta uma série de fatores que a torna um dos ambientes mais desiguais da economia contemporânea. “Conforme apontam analistas, apesar da alegação de que o Bitcoin é uma rede horizontal e distribuída, que pulveriza o poder (político) de emissão de moeda, trata-se de um empreendimento caracterizado por altíssimo grau alto de hierarquia política e concentração econômica. Esse mercado não apenas replica, mas exacerba as mesmas desigualdades de riqueza e poder que podem ser encontradas no sistema financeiro dominante, alvo de sua crítica.” Edemilson foca sua crítica na concentração de riqueza gerada pelo modelo de recompensa adotado na rede, que, segundo ele, contribui para a alocação de uma enorme quantidade de riqueza na mão de alguns poucos mineradores. 

“O mercado interno do Bitcoin privilegia aqueles que entraram primeiro, na medida em que a mineração nos primeiros anos era muito mais fácil e recompensadora do que atualmente”, explica em entrevista ao Laboratório. “Logo, os primeiros entrantes têm uma riqueza descomunalmente desproporcional ao trabalho entregue à rede. E como não há política econômica, estabilização monetária e entre outras intervenções, essa concentração não será nunca corrigida”.

Ele afirma ainda que o Bitcoin interfere também na desigualdade externa ao seu mercado: “A criptomoeda dificulta o trabalho de redistribuição de renda e organização econômica dos estados nacionais por ser usado como paraíso fiscal [mercado com taxas de tributação nulas ou quase nulas], entre outras razões. É uma fuga de divisas contra o Estado, que assim vê diminuída sua capacidade de ação para reduzir as desigualdades, como no caso dos mecanismos de redistribuição de renda e serviços públicos”. 

O debate sobre as várias questões envolvendo Bitcoins e seu mundo é, como todos os outros acerca de inovações tecnológicas, denso e longo. Mas o que parece consensual entre os especialistas é que a tecnologia do mundo das criptomoedas será, inevitavelmente, parte do nosso futuro.

6 comentários em “Bitcoin e blockchain: passos largos para o futuro do mundo financeiro”

  1. Parabéns pela excelente matéria. Muito esclarecedora e muito bem explicada, leitura amena, não cansativa e muito bem fundamentada. Ouvimos tanto falar em bitcoins mas não temos ideia de suas complexidades e avanços. Esse é o verdadeiro jornalismos, que agradam o leitor que sai bem informado do tema proposto.

  2. Parabéns pela excelente matéria. Muito esclarecedora e muito bem explicada, leitura amena, não cansativa e muito bem fundamentada. Ouvimos tanto falar em bitcoins mas não temos ideia de suas complexidades e avanços. Esse é o verdadeiro jornalismos, que agradam o leitor que sai bem informado do tema proposto.

  3. Gostaria de parabenizar o autor da matéria Regis Ramos. A melhor e mais esclarecedora matéria que li sobre o tema. Inicialmente deu uma aula de história para nos contextualizar sobre tecnologia e economia e depois nos agraciou com “os dois lados da moeda”. Nos trouxe a dialética do tema informando com muita clareza duas visões sobre esse mercado tão comentado. A matéria foi tão agradável de se ler e tão educativa que a li novamente em voz alta para que minha esposa finamente pudesse entender sobre as tão faladas bitcoins!
    Parabéns!!! Aguardamos as próximas matérias!!!!

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