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Lendas amazônicas: muito mais que histórias assustadoras e seres fantásticos

Com personagens que incluem referências nacionais, os mitos trazem reflexões e ensinamentos diversos

Curupira, Matinta Perera, Anhangás, Mapinguari. Você já deve ter ouvido falar em pelo menos uma das lendas amazônicas que habitam o imaginário brasileiro. Objetos de fascínio e temor, esses seres mitológicos são importantes representações da visão de mundo das comunidades tradicionais da Amazônia, como indígenas e ribeirinhos. Além disso, as lendas apresentam uma multiplicidade de temas, que vão desde a relação entre o ser humano e a natureza até a história colonial do Brasil.

Segundo Glacy Ane Santos, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), as lendas amazônicas abordam a existência humana em meio aos elementos naturais da região: “São narrativas que falam dessa vida cercada pelas águas dos rios e das cachoeiras, pelos igarapés e pelas florestas“. Elas também trazem reflexões sobre o comportamento das pessoas em geral. “As lendas são fatores organizativos da vida cotidiana ribeirinha, pois retratam modelos de conduta, valores morais e exemplos de virtudes e de falhas”, complementa Glacy. 

A pesquisadora enfatiza ainda que essas lendas enriquecem não apenas o repertório cultural local, mas também o nacional, pois estão presentes em diversas danças, músicas, modas de viola, performances teatrais e, mais recentemente, em telenovelas e seriados brasileiros, como A Força do Querer (2017) e Cidade Invisível (2021). 

 

Lendas amazônicas: figura humana na sombra, com cabelo em chamas, em fundo de floresta
Curupira em “Cidade Invisível”, série brasileira que mistura drama, mistério e elementos do folclore.  [Imagem: Divulgação/Netflix]

Da conservação ambiental ao feminismo

Uma temática frequente nas lendas amazônicas é a proteção da fauna e da flora. Por exemplo, o Curupira, considerado o guardião da floresta, persegue caçadores que derrubam árvores e capturam animais. Os pés virados para trás enganam as pessoas que tentam fugir, já que elas acabam indo de encontro a ele, e também aqueles que tentam capturá-lo, mas caminham na direção oposta.

Outro exemplo são os Anhangás, espíritos que podem assumir formas diferentes (geralmente a de um veado). Assim como o Curupira, eles são seres protetores da floresta e punem caçadores. “A má-utilização da natureza e a apropriação inadequada dos recursos naturais são questões muito presentes nessas narrativas”, pontua Cincinato Marques Júnior, geógrafo e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), que vive na região amazônica.

 

Lendas amazônicas: veado branco em meio a troncos de árvores em tons azulados
Representado como um veado (e também como um tatu, boi ou pirarucu), o Anhangá é um espírito protetor das matas, dos rios e dos animais selvagens. [Imagem: Reprodução/Youtube/Folclorando]

As histórias são recheadas de simbolismos e de reflexões sobre a sociedade. O professor da UFPA chama a atenção para a lenda da Matinta Perera, uma mulher idosa, que à noite se transforma em um pássaro agourento. Ela pousa sobre os muros e os telhados das casas e se põe a assobiar. Ao ouvir seu canto, é preciso que os moradores ofereçam-lhe algo, normalmente tabaco e café.

“A Matinta Perera carrega o fardo de se transformar em pássaro no meio da noite e assombrar as pessoas. Quando ela morre, esse fardo é passado para outra mulher. Isso é um simbolismo da questão do feminino: dentro da sociedade machista, misógina e patriarcal em que vivemos, ser mulher muitas vezes pode ser um fardo”, comenta.

 

Um retrato do passado

O passado colonial do Brasil é outro tema presente nas lendas amazônicas. É o caso do Boi-Bumbá (ou Bumba Meu Boi). Nessa história, a Mãe Catirina, uma mulher escravizada, está grávida e deseja comer a carne do boi preferido do dono da fazenda onde vive. Ela então pede ao marido, Chico (ou Pai Francisco), também escravizado, que mate o animal. Após notar a morte do boi, o dono convoca curandeiros e pajés para trazê-lo de volta à vida, e a comunidade comemora sua ressurreição com uma grande festa.

Para Glacy, a lenda do Boi-Bumbá representa a relação tríplice entre o homem branco colonizador, a sociedade negra e escravizada e os indígenas. “Todo o espetáculo do Boi-Bumbá é um retrato do choque cultural e das relações conflituosas entre esses grupos distintos, o que é retratado de forma harmônica a partir das melodias e das toadas”, afirma a pesquisadora, que conhece de perto o Festival Folclórico de Parintins, estrelado pelos bois-bumbás Caprichoso e Garantido.

 

boi artesanal feito com tecido preto e vários enfeites coloridos, com bandeirolas coloridas ao fundo
Típica das regiões Norte e Nordeste, a festa popular Boi-Bumbá (ou Bumba Meu Boi) foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela ONU em 2019.   [Imagem: Reprodução/Fala Universidades]

Funções e apropriações do mito 

As sociedades de tradição oral transmitem os conhecimentos entre as gerações por meio de narrativas míticas. Segundo Waldemar Ferreira Netto, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), “as narrativas atuam como um livro que guarda informações para a realização das mais diversas atividades e para os mais diversos comportamentos”.  

Além de instruções para a conduta e para a realização de atividades simples, como o preparo de alimentos e receitas de cura, os mitos trazem explicações sobre assuntos complexos, como a origem do mundo. “Os elementos que compõem as narrativas míticas são sempre ‘os primeiros de todos’: o primeiro ser humano, a primeira noite, o primeiro deus, o primeiro animal, a primeira tristeza, a primeira risada e assim em diante”, comenta Waldemar. 

Ele ressalta também que o mito explica o estado atual do povo específico que o elabora, de modo que povos diferentes criam narrativas míticas singulares. Por isso, traduzir ou reutilizar essas narrativas fora do seu contexto original não é adequado, embora seja uma prática comum. 

Quando transportados de seu contexto de criação para outro, os mitos podem ser reinterpretados equivocadamente, e as figuras mais exóticas retratadas por eles passam a ser enxergadas de forma simplista, como meros monstros, fadas, bruxas ou demônios.

É o caso do filme Curupira (2021), que recebeu críticas, inclusive de uma liderança pataxó, por transformar o protetor das florestas em um demônio, com olhos vermelhos e rosto raivoso. O diretor, Erlanes Duarte, afirmou que não teve a intenção de ofender nenhuma etnia indígena.

 

Representações equivocadas distorcem o que os mitos de fato representam na visão dos povos que os criam e perpetuam. “Muitas vezes as lendas [amazônicas] não são vistas como algo sério, como ensinamentos ou construções sociais e históricas. Elas são colocadas apenas no plano do fantástico”, pontua Cincinato.

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