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Futuro do Minhocão está em jogo

Em meio a discussões, o uso do elevado como foi proposto inicialmente chega cada vez mais perto do fim

Por Mariah Lollato (mariah.lollato@gmail.com)

O elevado João Goulart, a princípio chamado de elevado Costa e Silva, foi inaugurado em janeiro de 1971, pelo então prefeito Paulo Maluf. Liga a praça Roosevelt, na região central, ao largo do Padre Péricles, na Zona Oeste. Fruto de uma política que privilegiou o transporte individual em detrimento do coletivo, nasceu num contexto em que o regime militar promovia obras colossais pelo país. Já na época causava polêmica, levando jornais a publicarem manchetes que questionavam sua construção. Os imóveis, terrenos e comércio do entorno foram drasticamente desvalorizados com ela.

Cinco anos após ser inaugurado, por conta do barulho e da poluição, o Minhocão passou a fechar para carros da meia noite às 5h. Em 1989, o fechamento foi estendido para das 21h30 às 6h30, durante a semana, e o dia todo aos domingos. Nestes horários, o espaço começou a ser espontaneamente ocupado por pedestres. Ao longo dos anos, as discussões sobre alternativas viáveis de lidar com os problemas gerados pelo Minhocão cresceram. Ao mesmo tempo, o elevado se tornou área de lazer para grande parte da população.

Para Marcelo Santos, carioca que há sete anos mora em São Paulo, o Minhocão é a síntese de uma cidade que não sabe crescer. Alex Lacerda, integrante da Associação Parque Minhocão, vê a estrutura como uma fronteira. Thiago Oliveira, que há quatro anos mora de frente para o elevado, o entende como um símbolo da ressignificação de espaços. Para Rafael Leme, que frequenta o lugar aos finais de semana, o Minhocão é um ambiente de lazer.

Pedestres caminham pelo Minhocão; ao fundo, arte de Patrick Rigon e Renan Santos, em defesa da liberdade trans. No mural, que retrata três mulheres transgênero, lê-se: “A arte resiste. Resistir para poder existir.” (Imagem: Mariah Lollato)

Há cinco anos, Fernando Haddad, prefeito na época, aprovou o Plano Diretor Estratégico — que definiu diretrizes de desenvolvimento para os próximos 15 anos de São Paulo. Parte do documento estabeleceu a desativação gradativa do Minhocão, que deveria ser desmontado ou transformado em parque. Apesar disso, o papel não determinou prazo para que as mudanças acontecessem.

Em fevereiro do ano passado, antes de deixar a prefeitura para concorrer ao governo do estado, João Dória promulgou a lei que oficializa a criação do Parque Minhocão. Com isso, vetou o desmonte completo do espaço, mas não parcial. Um mês depois, o tráfego de veículos no elevado foi proibido também aos sábados. Desde maio, ele fica fechado para carros e aberto para pessoas das 20h às 7h, durante a semana, e o dia todo aos finais de semana.

A lei promulgada por Dória definiu prazo de aproximadamente dois anos para apresentação de um Projeto de Intervenção Urbana* que estabelecesse como seria feita a transformação, parcial ou não, do elevado em parque. Apesar disso, não há data limite para que o projeto seja executado. Pessoas favoráveis e contrárias à criação do Parque Minhocão continuam a se engajar em discussões sobre o assunto.

Quase 50 anos após a inauguração, o Minhocão já é parte da paisagem de São Paulo, e compartilha com centenas de milhares de pessoas dois quilômetros e oitocentos metros da cidade.

Como é viver debaixo do Minhocão?

Durante a semana, centenas de estabelecimentos comerciais dividem espaço com o elevado. Para quem olha de baixo, ele se impõe de maneira gritante. Se em São Paulo os ambientes já são de efervescência, ali é como se tudo estivesse em ebulição. Antes que um comerciante aceitasse falar comigo, recebi três nãos incomodados, junto a olhares de quem pedia que fosse embora. Era como se eu estivesse invadindo uma dinâmica que não me pertencia.

Minhocão visto da rua Amaral Gurgel, por onde passa (Imagem: Mariah Lollato)

Iarlei Rangel mora em frente à estrutura há 14 anos. Ele acredita que o maior impacto do Minhocão não é sentido por quem vive ao seu redor, mas por quem está debaixo dele. “É um lugar inóspito, onde o sol não chega. Essa situação cria um ambiente repressivo de extremo mergulho no eu. Mas não de um modo positivo, como autorreflexão é um eu ruim.”

Somando-se as vias de baixo com as de cima, existem oito faixas por onde passam carros, motos e ônibus. Juntos, eles liberam grande quantidade de gases que não conseguem se dissipar e ficam concentrados embaixo do elevado. Márcio Medeiros, gerente da Mercearia Casa do Norte, que fica em frente ao Minhocão, conta que a poluição lá é grande. “O ar é bastante carregado. As paredes ficam pretas, limpo tudo duas ou três vezes por semana.”

A estrutura de concreto tão próxima dos prédios também é responsável por amplificar o som dos veículos. “Forma-se uma caixa acústica que deixa o volume do trânsito muito maior. Quando vão chegando às 18 horas, o barulho é quase insuportável”, afirma Iarlei.

Junto às lojas da região, misturam-se pedestres e muitos moradores de rua. Os dois quilômetros e oitocentos metros por onde passa o Minhocão são heterogêneos, e as relações que se constroem ali também. Márcio, por exemplo, apesar da sujeira, diz não se incomodar com o elevado, até gosta dele. Mas outros comerciantes o consideram um incômodo e se mostram irritados com isso.

Como é viver acima do Minhocão?

Ao longo dessa extensão, encontram-se também centenas de prédios residenciais. Francisco Machado mora em um deles há 19 anos. Mesmo não estando de frente para o Minhocão, é influenciado pela proximidade. “As cortinas ficam cinzas por conta da poluição, e preciso tirá-las para lavar com frequência.”

Ele também reclama do barulho. De fato, enquanto eu ouvia o áudio de sua entrevista, concedida no térreo do prédio onde mora, o ruído dos carros tornava difícil compreender o que falávamos. Thiago Oliveira, por outro lado, vive há anos no segundo andar de um edifício na Avenida São João, e diz não se incomodar. “Não atrapalha em nada a execução de minhas tarefas diárias. Consigo dormir, assistir televisão, ouvir música.”

As janelas de seu apartamento dão de frente para o Minhocão. Sobre como se sente a esse respeito, ele responde: “Eu gosto. Traz uma sensação de pertencimento, de fazer parte da cidade. Ver gente passando pela minha janela me dá a impressão de estar próximo das pessoas, de não estar sozinho. Adoro morar aqui.”

Fechado para carros, aberto para pessoas

Durante os finais de semana, o tráfego de veículos no Minhocão fica proibido. Nestes momentos, centenas de pessoas usam o espaço para andar de bicicleta, patinar, correr, praticar yoga, levar seus animais para passear ou apenas caminhar.

O espaço do elevado não conta com banheiros públicos, árvores, bancos ou qualquer tipo de estrutura. A ocupação se deu de maneira espontânea, por iniciativa da própria população. A sensação é de que o semblante das pessoas ali realmente é diferente. Estão receptivas à abordagem de estranhos, como eu. É como mudar a chave dentro de uma rotina caótica no centro de São Paulo.

Grupo joga futebol no espaço acima do elevado (Imagem: Mariah Lollato)

Rafael Leme e Sweeli Suzuki moram juntos, na rua Pirineus. “Vamos a pé para o Minhocão quase todos os domingos e trazemos nossa cachorra Hanna para passear”, diz Sweeli. O carioca Marcelo Santos atualmente vive na Zona Leste e usa o espaço para praticar esportes. Quando o entrevistei, patinava com seu amigo Lucas. Rafaela e Isabela dos Santos, de cinco e quatorze anos, são irmãs, e andam de bicicleta, pulam corda, brincam de amarelinha e tomam sorvete no Minhocão. Pergunto a elas o que achariam se o  elevado não existisse mais: “Eu não gostaria, prefiro aqui a qualquer parque”, responde Rafaela.

Vitor Campanário é morador de Perdizes e costuma ir ao elevado para fotografar. Diz acreditar no poder transformador do convívio que acontece ali. “Quando alguém se fecha em um carro, um condomínio, um clube, esta pessoa só terá contato com iguais. Já no Minhocão, existe todo tipo de gente: crianças, idosos, casais de todos os gêneros. Esse encontro fortalece a vida na cidade, e o afeto para com o outro.”

Quando fechado para carros, o Minhocão torna-se uma área de lazer (Imagem: Mariah Lollato)

A lógica sob a qual São Paulo foi construída não contribui para este convívio. A cidade foi pensada para que os habitantes se locomovessem individualmente, de carro e o Minhocão é símbolo disso. “Foi arquitetado partindo da ideia de que o transporte privado é tão importante que pode se sobrepor a tudo, passar a metros de casas e degradar o dia a dia de uma região”, afirma Iarlei. O novo uso dado ao elevado nos finais de semana reverte este raciocínio.

Para ele, espaços humanizados são essencialmente espaços em que as pessoas podem conviver: “espaços ocupados por gente.” Apesar da ausência de infraestrutura, o Minhocão é isso. O que o transforma em um parque não são árvores ou bancos de madeira, mas as pessoas que estão ali. “A sensação que se tem ao entrar no Minhocão em um dia de verão é a de haverem diferentes energias existindo em conjunto. No Parque Ibirapuera, por exemplo, a sensação é a mesma”, diz Iarlei.

Ciclistas tomam conta do espaço do elevado aos finais de semana (Imagem: Mariah Lollato)

Ações culturais ocupam o Minhocão

Além de viver há anos na rua Amaral Gurgel, que dá de frente para o elevado, Iarlei é produtor e integrante do Grupo Esparrama, formado em 2012. O primeiro espetáculo que apresentaram foi ensaiado em seu apartamento. Durante os intervalos, palhaços da peça iam à janela e chamavam a atenção de quem passava. Assim surgiu a ideia do Teatro na Janela, que estreou em 2013.

O lugar é usado como palco para espetáculos que discutem a relação dos indivíduos com a metrópole. Os atores se apresentam da janela do apartamento, que fica no segundo andar, e os espectadores assistem gratuitamente, sentados no Minhocão. “Quando começamos, ainda não tínhamos dimensão do quanto pode ser louco, para algumas pessoas, se sentar em um lugar onde antes só passavam de carro. Isso muda toda a relação que o indivíduo constrói com a cidade, é transformador”, afirma Iarlei.

Apresentação do Grupo Esparrama, na janela do prédio onde mora Iarlei (Imagem: Reprodução)

Ana Garni é jornalista e estuda artes plásticas desde o ano retrasado. Ela é fundadora do projeto GIZ, que leva crianças a ocuparem a cidade por meio da arte. A proposta é reuni-las para que possam desenhar no chão, com giz de lousa. Foram realizadas já três edições do evento no Minhocão, a maior delas em fevereiro do ano passado, no carnaval, atraindo onze mil pessoas. 

Ela também ressalta a importância da realização de atividades assim na infância. “As crianças crescem com a visão de que a cidade não é para elas. Quando vemos arte urbana e achamos aquilo bonito, nos afeiçoamos ao espaço e passamos a entender que ele pode ser habitado.”

Bloquinho do Giz, realizado pelo Projeto Giz no carnaval de 2018, no Minhocão (Imagem: André Ligeiro)

Outro projeto que realiza ações culturais no Minhocão é o coletivo LUTTA – Liberdade Urbana para Tempos e Territórios de Afeto. “Uma das maneiras com a qual atuamos é por meio de marcas deixadas no território”, afirma Alex Moret, integrante do coletivo. O grupo utiliza lambes (pequenos posters de papel colados com cola). “O lambe é efêmero, e pode ser retirado caso alguém não concorde com o que dizemos.”

Eles também buscam defender as origens culturais do Brasil — levam maracatu, ciranda e festa junina para o Minhocão. Quando perguntada sobre que mudança considera alcançar com este trabalho, Dábila Cazarotto, integrante do projeto, responde: “Somos seres coletivos, e queremos resgatar isso”.

Coletivo Lutta realiza intervenção no Minhocão, com palhaços e forró (Imagem: Mariah Lollato)

Apesar da importância das ações, Iarlei crê ainda que a beleza última do que acontece no Minhocão está na espontaneidade com a qual foi ocupado. “As pessoas queriam um espaço para praticar esportes, se divertir, caminhar. É uma transformação bonita nesse sentido. É uma transformação que a própria população fez.”

Para além da Zona Centro-Oeste

O destino do Minhocão divide opiniões. De um lado, existem os que acreditam que o elevado deva ser desmontado, para livrar o espaço térreo da poluição e da falta de sol, questões que não serão resolvidas com o Parque. É o caso do Movimento Desmonte do Minhocão, de que Francisco Machado e diversos outros moradores fazem parte. O grupo já realizou, por meio da empresa Desmontec, estudos que mostram que o desmonte poderia ser feito em seis meses, a um custo de 28 milhões. As 900 vigas de concreto resultantes seriam vendidas por 80 mil reais cada.

Outro argumento usado por quem acredita na medida é o fato de que a transformação do Minhocão em parque encareceria drasticamente o preço do comércio e da moradia no local. Assim, as pessoas que ocupam o espaço hoje não seriam beneficiadas, seriam apenas expulsas para regiões mais distantes. O mercado imobiliário se aproveita dessa circunstância. Já é possível ver mais de cinco empreendimentos novos sendo construídos na região, que passa a ser chamada por investidores de “Baixo Higienópolis”.

Por outro lado, há os que defendam a transformação em parque como prevê a Lei aprovada por Dória. O projeto é encabeçado pela Associação Parque Minhocão, composta por arquitetos, urbanistas, artistas, moradores dos entornos e pessoas ligadas às atividades esportivas que acontecem no elevado. É desse grupo que Alex de Lacerda faz parte. Ele admite que a ideia pode apresentar problemas na prática, mas ainda assim acredita nela. Se transformado em parque, o Minhocão preservaria as atividades que acontecem lá e a relação de pertencimento que muitos construíram com a cidade a partir disso. Seria mantido um espaço que se transformou em memória afetiva para parte da população.

O documento assinado por Dória deixa ainda a opção de que sejam feitos parques em trechos do Minhocão, enquanto outros seriam desmontados. O encontro entre a rua Amaral Gurgel e a avenida São João é uma das regiões mais caóticas, em que a proximidade com os prédios, a poluição e o barulho são grandes. A área poderia ser desmontada enquanto outras seriam mantidas, como pontos mais próximos da praça Roosevelt onde a distância das construções no entorno é maior.

*Esta reportagem foi produzida entre os meses de maio e junho de 2018. Em fevereiro de 2019, o prefeito Bruno Covas, por meio de um Projeto de Intervenção Urbana, determinou a construção do primeiro trecho do Parque Minhocão, que se estenderá da Praça Roosevelt ao Largo do Arouche e deverá ser entregue até 2020. O desmonte do restante do elevado, bem como posteriormente do próprio parque, não está descartado. Não existem estudos para avaliar o impacto social que o encarecimento da região gerará.

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