Jornalismo Júnior

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O tesouro iluminado pela Apropriação Cultural

Uma parte bela e, muitas vezes, desconhecida da discussão que só começa com o reconhecimento da parte feia da história

Por Ana Gabriela Zangari Dompieri (anagabrielazd@usp.br)

A discussão sobre Apropriação Cultural não é recente. Mas no ano retrasado se popularizou, disseminando-se tanto por novos espaços acadêmicos quanto pelo âmbito das redes sociais. Isso ajudou a elucidar certa parcela dos apropriadores quanto ao incômodo que, sem saber, poderiam estar gerando ao usar determinados adereços ou ao adotar determinadas práticas.

Em 2017, nos ´fóruns virtuais´, com a potência que o sensacionalismo ganha na internet, a discussão caiu na polêmica de uma mulher branca com câncer que usou um turbante e teve sua atenção chamada por negras. Desde lá foi difícil o tema se recolocar no seu lugar.

Emocionada com esse caso limite, grande parte do público investiu suas forças em um debate de “quem sofre mais”, opondo à opressão histórica às minorias sociais a uma condição individual de saúde, bastante delicada e desafiadora. As negras ficaram aparentemente vilanizadas e o assunto, esgotado.

Tentou-se escapar da exaustão do público e da hiperexposição (após os diversos ataques derivados do caso relatado acima) das defensoras do uso consciente dos itens em questão. Com isso, a ideia de Apropriação Cultural acabou se condensando nas falas: “é a minha liberdade de expressão, eu quero usar, eu vou usar” vs “você não sabe o significado e nem o valor desse item para a cultura a que pertence, então você não usa”.

O cerne e a beleza da discussão distanciaram-se do objeto “Apropriação Cultural”. Notável na discussão toda é a gana pela retomada da posição, por direito, daqueles que foram historicamente dominados. É essa uma posição de soberania sobre sua própria cultura – a qual, por tempos, maiores ou menores, sofreu intentos de esvaziamento por parte dos dominantes.

Nessa visão, o diálogo sobre Apropriação Cultural torna-se não só a ferramenta para que uns deixem de ofender outros em situações pontuais, mas também um campo de aprendizado coletivo. Acontece uma ampliação do conhecimento sobre as culturas com as quais convivemos cotidianamente, que foram determinantes na construção da nossa História como nação e, no mais, como humanidade. Nesse outro patamar, visibiliza-se cada cultura como um todo, tanto através da pluralização quanto do aprofundamento. A discussão não é apenas um guia do que se deve ou não usar.

É importante ressaltar que, sem pertencer à cultura referente, é quase impossível que compreendamos inteiramente o significado contextualizado dos itens que serão tratados nessa reportagem – ou em um relato, ou no Facebook. Conhecer mais nos deve servir de incentivo a ouvir ainda mais, não a impor nosso pouco saber para embasar concepções que tentam, querendo ou não, reinstaurar a lógica da dominação.

O primeiro passo já é construtivo, porque – além de agregar à nossa visão de mundo – nos dá indícios de que há muito por se descobrir daquilo que circunda étnica, histórica e culturalmente itens que podem aparecer banalizados no dia-a-dia. Além disso, faz com que caminhemos no sentido do respeito ao lugar de fala. Isso leva a não invadirmos, com as nossas opiniões derivadas de uma compreensão parcial, o fluxo pluridirecional de pertencimento entre a cultura, o adereço e a pessoa.

 

Mehandi: “A cultura e a arte fortalecem muito um povo”

A cultura indiana pode ser considerada descendente de uma cultura original, ancestral, a cultura védica, que, à época, era tida por seus participantes como uma “cultura do mundo todo”, o que se sabe pela análise das escrituras védicas- as quais datam de 5.000 a.c. e, já nesses textos, essa cultura mãe é reconhecida como antiga. É dito que tal registro estava sendo feito porque sentiu-se um decaimento na memória do homem, após um grande período de difusão oral do conhecimento.

Hoje, então, quando pensamos nas contribuições à humanidade dessa cultura ascendente, é válido que associemos muitas delas à cultura indiana, enquanto uma de suas filhas que preservou parte desse conhecimento e desses valores originais. São exemplos de tais contribuições o vegetarianismo, que vem se difundindo com grande alcance e rapidez; a ‘visão holística’, segundo a qual tudo está interligado: a vida, a felicidade, a saúde, o pensar, o sentir e o agir; e, em conjunto com sua expansão ao redor do globo (como contraponto ao excesso de informações, tarefas e à velocidade sobre-humana atualmente exigida das pessoas), temos o yoga, cuja procura amplificou-se no Ocidente, muitas vezes como um caminho para rearmonização dos fatores interdependentes aqui citados.

 

Opressão indiana?

A opressão ao povo indiano não é óbvia. Ela se dá, muitas vezes, pela lógica capitalista, que é representada, em última instância, pelos interesses de um país, os Estados Unidos. Essa lógica acaba por oprimir muitos povos no contexto da globalização. Nesse mesmo contexto, pode-se observar uma corrida da Índia para se encaixar no novo sistema mundial.

Rosana Araújo é a entrevistada com quem conversei sobre a cultura indiana. Formada em gravura pela UFRJ, hoje ela estuda e ensina a pintura de henna indiana no Brasil e no mundo, como em continuação de um processo de aprendizado que começou na Índia, em 2005. Nesse tempo, ela prestou consultoria para empresas de peso, como a Rede Globo, na novela Caminho das Índias.

Sobre o esforço do país pela inserção no sistema mundial, ela diz refletir, muitas vezes, na ocidentalização desse povo, o que pode ser enxergado como uma forma de opressão: “Eles acabam tendo que adaptar várias coisas da própria cultura”. São sinais desse processo a gradual redução do uso do sári e uma maior adoção de modelos do Ocidente no cinema e nas artes plásticas.

Há um fenômeno decorrente dessa ocidentalização e, ao mesmo tempo, da exaustão dos ocidentais em relação a nossa conjuntura vigente. Ocidentais resgatam traços da cultura indiana, ao mesmo tempo, indianos valorizam e buscam tudo aquilo que é de fora. Por isso, quando um indiano vê elementos de sua cultura representados no exterior, ele se sente, muitas vezes, contente e valorizado. Essa, até certo ponto, dependência da opinião externa, já sinaliza qual é a posição ocupada pelo povo indiano em um sistema de hegemonias e opressões no mundo. Quão feliz ficaria um americano ao ver um indiano usando um tênis da Nike? É notável a assimetria.

“Talvez, se os indianos tivessem ampla consciência do valor de sua cultura, não seria necessário um ocidental reapresentar certos elementos culturais a eles para que, então, os valorizem ainda mais”. De acordo com ela seria provável que a opressão contínua – primeiro mongol, depois inglesa, até a atual – tenha minado a autoestima da etnia. “Na verdade, o povo indiano sabe da riqueza de sua cultura, mas parece haver um sentimento de que o potencial dela ainda não foi reconhecido ou aproveitado mundialmente”.

No mais, pode-se remeter ao caso de racismo contra o próprio Mahatma Gandhi, em um trem na África do Sul, ainda sob o regime do apartheid. Para além do exemplo anterior, pode-se dizer que a pele escura, que muitos deles possuem, é  um fator que gera discriminação tanto em contextos fora do país, quanto dentro. Corroborando com a não obviedade da opressão ao povo indiano, existe uma discriminação interna pautada nas variações de tom de pele. Para eles próprios, muitas vezes, uma pele mais escura é desvalorizada e, diferentemente do que ocorre no Brasil, essa visão não é velada: “Eles não têm essa consciência do racismo, não veem isso dessa forma”. O maniqueísmo entre bonito e feio, associados, respectivamente, à pele clara e pele escura fica naturalizado e escancarado. Há indianos que até evitam pegar sol. Essa concepção discriminatória pode ter sido herdada da colonização inglesa, configurando-se como uma opressão internalizada.

O que é a pintura Mehandi?

A pintura Mehandi (ou Mehndi) é a arte em que se tinge temporariamente a pele com o sumo de uma planta, a henna, seguindo certa padronização.

Existem diferentes padrões estéticos do Mehandi (Imagem: Reprodução/ Wiki Commons)

Nas regiões interioranas da Índia, obtêm-se essa substância fresca, com a ajuda do moedor de pedra. Por esse meio, a henna recolhida já está pronta para ser usada no procedimento de pintura. Porém, no Brasil, o que acontece é que o material, importado, já chega tendo sido colhido há certo tempo e, por consequência, tendo perdido, como qualquer outro vegetal, parte de suas propriedades. Assim, em locais mais distantes da plantação, devem ser usados mais ingredientes no composto de tingimento para reativar a tintura natural da planta, como um agente ácido (uma solução aquosa de ácido cítrico, como o suco de limão) e alguns óleos essenciais de química específica (por exemplo o lawsone).

Curiosidade: Os antigos faraós do Egito têm, até hoje, os cabelos, as unhas e os dedos coloridos com henna. Isso tanto porque a sua aplicação fazia parte de seus rituais de passagem, tais como os relacionados à morte, quanto pela sua propriedade antisséptica, que era aproveitada no embalsamento, ajudando a preservar o corpo. Nesse caso, o tingimento é permanente, pois não houve mais substituição das células que absorveram o pigmento da henna.

 

O procedimento de pintura

Atualmente o procedimento mais usado no mundo adota como ferramenta um aplicador artesanal, feito manualmente pelos artistas: um cone de celofane, análogo a um saco de confeitar. A variabilidade da espessura das linhas desenhadas pode ser conseguida de duas maneiras. A primeira é o uso alternado de cones com diâmetros diferentes de ponta e a segunda é a técnica do controle da pressão aplicada a um mesmo cone.

 

A henna e a história

A henna é uma planta de deserto, ou seja, ela se associa culturalmente a diferentes povos provindos de climas desérticos. Mesmo na Índia, há regiões específicas, como nas de Rajastão e de Gujarate, em que nasce a henna adequada para o tingimento da pele. Por essa questão geográfica, “a cultura da henna existe em regiões da África, no Oriente Médio, no Paquistão. E, em todos esses lugares, desenvolveu-se, praticamente ao mesmo tempo, o hábito de pintar o corpo com essa planta”. Concebe-se que tal uso dela foi descoberto em algum momento de sua colheita, quando foi percebido que a henna manchava as mãos e, além disso, gerava certa resistência nelas, uma vez que (hoje se sabe), o contato com a substância induz a produção de queratina. Portanto a prática da pintura foi inicialmente adotada com o objetivo de proteção contra arranhões decorrentes das atividades ligadas à colheita da henna.

A henna tem usos medicinais descritos pela medicina milenar ayurvédica, que, posteriormente baseou o desenvolvimento da medicina tradicional chinesa, árabe, romana e grega.

Curiosidade: Cleópatra, a mais famosa rainha do Egito, usava henna tanto para tingir seus cabelos, quanto para pintar as pontas de seus dedos, o que inclui as unhas. Por essa segunda prática, ela é considerada a inventora do esmalte.

Chama-se henna tanto o corante quanto a planta de que é extraído (Lawsonia inermis) (Imagem: Reprodução/ Wiki Commons)

Parâmetro histórico

Desde os primórdios, há um desenho básico (Alta) que é feito na Índia. Nele, tingem-se na palma ou no verso da mão – ou ainda o peito do pé – um círculo, e as pontas dos dedos. Simbolicamente, essa construção visual se relaciona ao Sol, um símbolo auspicioso, promissor, e à energia primordial Shákti, da essência do feminino, origem de tudo. Shákti representa “a abundância, a beleza, a criatividade, o dinheiro, a inteligência”, como diz Rosana. “É a energia de tudo de bom”.

Segundo alguns estudos, com a invasão mongol, no século VI, os desenhos mais elaborados começaram a ser desenvolvidos. Isso porque os árabes, presentes no Império Mongol, já tinham, na sua pintura com henna, a estética dos florais e dos arabescos, enquanto os indianos contavam com desenhos mais “marcados” e voltados aos símbolos básicos citados.

Essa fusão de culturas influenciou os desenhos do Mehandi, de forma que é difícil saber com exatidão o que é puramente indiano e o que se originou de outros povos. Muito disso se deve, em primeiro lugar, ao fato de que as escrituras védicas, que são quase as únicas representantes dessa pureza indiana, não propiciam referências visuais artísticas originais. Ainda que haja algumas descrições na literatura, elas não são precisas a ponto de permitirem uma reprodução exata.

Em segundo lugar, se deve à lógica desse tipo de contato entre povos, na qual o dominante busca a rarefação da cultura do dominado – processo presente no conceito atual da Apropriação Cultural. Isso parte da concepção de que, nas palavras de Rosana, “A cultura e a arte fortalecem muito um povo, então quando se quer subjugar, se destrói [esses elementos]”. Nisso, muitas referências que, hoje em dia, poderiam ser acessíveis, se perderam na História. Um exemplo disso é o dos templos hindus, arruinados pelos mongóis e árabes, que eram grandes referências da arte indiana e chegaram a influenciar o Mehandi e a estamparia.

 

Estética atual: Árabe x Indiano

Mesmo com os entrelaçamentos estilísticos ao longo do tempo, pode-se fazer uma distinção entre os designs atuais típicos indiano e árabe, segundo a pesquisa de Rosana. Aquele que vem se desenvolvendo nos países árabes costuma “contar com linhas mais grossas, mais densas, com uma forma mais marcada”. O estilo indiano, hoje, “tem linhas mais onduladas e finas, é mais minucioso e detalhado.”

 

A iconografia no Mehandi

Existem símbolos gráficos que remetem a significados específicos, mas existem outros que são apenas decorativos, ou têm significados subjetivos (como os florais, que podem remeter a “sua vida vai ficar florida”, “que se desenvolva e cresça como as plantas”, “que cresça como as trepadeiras, para cima”).  

Sobre os primeiros, há histórias da cultura indiana que justificam tais associações entre ícone e significação. Na verdade, funcionando como um ambientador cultural àquele que se dispõe a conhecer melhor, essas narrativas conferem vida e riqueza aos elementos visuais, elevando a compreensão a respeito deles a uma outra dimensão. Mas sintética e esquematicamente, tais elementos podem ser apresentados superficialmente:

O Sol representa o semideus Surya. É visto como algo essencial, uma vez que, sem ele, a vida e, portanto, todas as suas derivações, como a inteligência, ficam impensáveis. Além disso, o símbolo está associado à iluminação na esfera espiritual. Curiosidade: O Sol é tão central na cultura indiana, que, nela, o primeiro ritual pelo qual as crianças passam, comparável ao batismo, é o de apresentação ao astro. Nesse ritual de nomeação, o Namkaram, o bebê, na primeira vez em que vai à rua, é apresentado, não só ao Sol, mas também à comunidade e recebe as bênçãos de ambos.

O Pavão é um símbolo muito associado à espiritualidade e, sendo reconhecido como predador de serpentes, também à proteção contra inveja e mau-olhado. Além disso, liga-se à realeza, à beleza, à onisciência, por conta dos olhos em sua cauda, e a Krishna – uma emanação do ‘Deus hindu’, Brahma -, uma das divindades mais cultuadas na Índia.

A Manga, ícone bastante popular, simboliza a prosperidade, a abundância, a  fertilidade e a criatividade, todos associados ao feminino.

O Peixe é também é um representante da espiritualidade, mas, além disso, de amor. É o emblema da bandeira do cupido, o semideus hindu Kamadeva.

O Papagaio é outro símbolo do amor, sendo que Kamadeva aparece montado nesse pássaro em muitas representações. Espelha, também, a fidelidade. Uma das muitas histórias que exemplificam a compreensão desses símbolos na cultura indiana é a de Krishna e Radharani (Radha). Eram namorados, havia entre eles o amor divino. Por não serem casados, tinham que se encontrar escondidos. Vrinda Devi, uma amiga deles, era como se fosse a diretora da floresta em que o casal morava e ela, nessa função, fazia de tudo para facilitar o encontro dos dois. Radha tinha um papagaio e Vrinda Devi tinha alguns também. Por isso, amiga fazia uso desses pássaros como meio de comunicação entre os amantes, possibilitando o arranjo de diversas uniões entre eles.

 

O que pode representar o uso do Mehandi

O Mehandi pode ser feito com objetivos meramente estéticos, assumindo a função de um adorno. Tal uso dele na Índia parece estar crescendo: “Eu diria que esse sentido de adorno, de aplicação a qualquer momento, não era tão presente na Índia. Havia um peso ritualístico maior ao redor da pintura do que há hoje”, o que, na visão de Rosana, pode novamente ser associado à ocidentalização.

Em torno do uso da henna, espera-se culturalmente um contexto de felicidade. O uso do Mehandi em situações de luto, por exemplo, pareceria, no mínimo, estranho no âmbito social indiano. Além disso, ao aplicar a henna, a mulher cria uma espécie de conexão com a deusa Shákti, recebendo suas bênçãos e até mesmo incorporando suas características.  

É também comum que se veja a pintura como símbolo de um rito de passagem. Nessa visão, a henna pode ser usada tanto no próprio ritual, quanto em uma iniciativa individual.

No primeiro caso, pode-se evocar o festival anual Navratri, que acontece por um período de nove noites em forma de adoração à Shákti ou ainda o grande ritual dos sete dias pré-casamento, em que cada dia conta com vários rituais menores. No penúltimo dia desse processo de preparação, há o ‘Dia da Henna’ ou a ‘Noite da Henna’, ritual específico da sua aplicação, para o qual se faz uma festa em que os convidados e, sobretudo, a noiva recebem a pintura.

No segundo caso receber a arte traz à consciência que se está passando por um momento de transição, demarca o período tanto de consolidar uma despedida de uma fase quanto de adentrar uma nova.

 

A cerimônia em torno da aplicação

“Na Índia, a aplicação da henna é um carinho que se dá a outra pessoa, é uma forma de se demonstrar amor”, conta Rosana, que sofre um leve arrebatamento de emoção. Ela narra que, quando estava na Índia, no aniversário da sua professora de dança, fez uma aplicação nela como um presente.

Automaticamente, todos que moravam em sua casa se colocaram de prontidão a ajudá-la no que fosse preciso: trouxeram panos, água, comida. “O marido dela dava comida em sua boca. Não precisava pedir. Isso faz parte da cultura do Mehandi. O momento do Mehandi é o de a pessoa ser cuidada, dela sentir que ela é amada, que tem outras pessoas ali para ela”. Ela exemplifica a importância disso no período da gestação: “O papel de quem aplica henna na gestante é praticamente como que o de dizer ‘olha, você é linda, você é bonita, merece descansar e eu estou aqui para você no que você precisar’”.

Esse papel não se restringe a aplicar a henna, a pessoa está ali para ajudar. Enquanto alguém recebe a henna, não pode mexer as mãos ou os pés. “É como se estivesse dando uma licença para a pessoa descansar e ter um tempo pra ela mesma. Enquanto está com a henna, ela pode fazer uso dessa licença cultural para cuidar de si”. Segundo Rosana, é também um tempo para refletir sobre aquele momento da vida, geralmente é um momento de transição (uma gestação, um casamento, um noivado, mudança de casa, ingresso na faculdade).

Ainda sobre a quase liturgia da aplicação, Rosana complementa: “O modo original [de pintar] é intuitivo. Você pega a mão da pessoa e vai fazendo, ela não escolhe os desenhos, não há um mostruário, um catálogo.” Ela ressalta que não é fazer um desenho porque vai ficar bonito, mas sim uma arte que vai ser manifestada especificamente para aquela pessoa passar aquele momento da vida. “É um desenho que vai aparecer em sua pele para refletir e meditar em cima dele. Ele surte um efeito simbólico na psique…” Ela afirma que não é um simples adorno para se ir a uma festa, como lembra com a frase representativa “olha que fashion eu estou”. Ela diz que, apesar de ter uma faceta decorativa, não é apenas isso, como muitas vezes parece àqueles que usam o Mehandi sem conhecer sua cultura.

A possibilidade da vivência cultural

A visão do Mehandi como símbolo de resistência indiano não é tão adotada por eles. Assim, dependendo daquele que faz e daquele que recebe a pintura, é possível que a experiência se traduza em uma vivência cultural, podendo superar a camada de superficialidade e ignorância tão criticada na discussão da Apropriação. Com conhecimento a respeito da cultura, contextualização e consciência das regras do Mehandi (por exemplo, a de que pintar certos símbolos abaixo da linha da cintura é ofensivo), é mais provável que os indianos não se sintam incomodados com outros recebendo essa arte.

Isso não é igual a uma das situações mais criticadas da Apropriação, a do uso de elementos culturais pela indústria fashion, que coloca a aplicação da henna, nesse caso, em uma esfera de futilidade e ainda trata a cultura como mais uma mera via eventual de obtenção do lucro. Lucro esse, que, como o já dito, é ferramenta de opressão a esse mesmo povo quando atrelado à lógica da exploração. Essa perspectiva empresarial se dá como em um processo de faiscação, método em que se busca ouro nos cursos d’água, sendo o volume total de líquido a cultura, e o ouro, as particularidades que agregam valor comercial ao produto.

 

Turbante: “Ato político e de muito prazer”

Ao contrário do que muitas vezes se pensa ainda hoje, a cultura africana não é una. Há, na verdade, culturas africanas, relativas a diferentes etnias que vivem ou viviam em um mesmo continente. Esses povos muitas vezes sequer compartilham uma língua comum. Mas no Brasil e em outros países pelo mundo, os africanos e afrodescendentes são igualmente vítimas de uma opressão sistemática que pode se exteriorizar de diversas formas (verbal, ideológica, simbólica), em diversos contextos (escolar, pessoal, universitário, profissional) e âmbitos (individual e coletivo).

Entretanto, além desse lugar comum de alvo dos diversos níveis de violência relacionada ao racismo, há alguns elementos partilhados por muitas dessas culturas. Esses elementos, por unirem povos africanos ao redor de si, podem vir a servir como símbolos de resistência frente a essa opressão generalizada. O turbante é um desses símbolos.

 

Africanos e afrodescendentes no Brasil

No período da colonização, sobretudo no século XVIII, africanos foram trazidos ao Brasil para que trabalhassem na produção açucareira local, principalmente no nordeste do país.

Esse processo de vinda foi parte da chamada Diáspora Negra, fenômeno histórico e social no qual houve a migração forçada de africanos dos seus locais de origem para outras regiões do mundo, especialmente através do Oceano Atlântico. Apenas para as Américas, são contabilizadas doze milhões de pessoas no total, do qual cerca de 40% teve o nosso país como destino compulsório.

Na situação de escravizados pelo homem europeu e com a ajuda de forças locais africanas que mediavam esse trâmite, os negros eram transportados, como se sabe, em condições precárias e eram tidos como mercadorias com a legitimação da Igreja Católica. Havia um esforço por parte dos dominantes em relação à manutenção da hegemonia da útil concepção de que os negros não eram dotados de alma, o que pretendia sustentar a desumanização dos africanos.

Ceifados dos contextos a que pertenciam – casa, língua,conhecidos, costumes, deuses, família – os africanos vieram participar da História de um país que  identitariamente mal se bancava. E se pode dizer que, justamente por essa participação africana basal, criaram-se condições econômicas para que o Brasil de fato se consolidasse enquanto nação.

Às mais brutais tentativas de esvaziamento cultural, resistiram. Adaptaram as referências que cada um trazia e elaboraram a capoeira, a feijoada e o samba, por exemplo, todos atualmente indissociáveis da brasilidade. Entretanto só no Modernismo os negros foram reconhecidos, pela via da arte, como integrantes nacionais também protagonistas da construção do ‘ser brasileiro’.

Ainda assim, até hoje, a visão do negro subjugado, o preconceito e a desigualdade de direitos, na prática, muitas vezes prevalecem. Há uma deslegitimação tão velada, quanto institucionalizada da negritude no universo brasileiro.

Exemplificar as situações que indicam que os negros no Brasil ainda são alvo de opressão é quase desnecessário, mas pode-se ressaltar, de forma mais ampla, a proporção dos negros dentre o total de vítimas de homicídio, a precariedade do acesso à educação e a falta dessas pessoas em cargos de liderança empresarial e da política nacional. Há ainda a banalização desses indicativos condenáveis, e o mais grave, a escassez de medidas sérias do Estado que busquem sanar essas questões enxergando-as em profundidade e complexidade.

Se na cultura brasileira a negritude é peça formante e essencial, no âmbito da cidadania é extraordinariamente urgente a consolidação integral dos negros nas esferas civil, política e social. Eles devem possuir seu espaço no quebra-cabeça étnico do país. Uma nação que, para se sustentar enquanto tal, se serve de culturas não pode querer, ou sequer aceitar, a exclusão e a marginalização dos povos de que elas provêm.

 

A contribuição de uma etnia no Brasil

Thaís Muniz é criadora do projeto Turbante.se. Ela se define como uma mulher negra consciente de seu papel. Sua pesquisa é em torno do turbante na Diáspora Negra. Com o projeto ela dá workshops dentro e fora do Brasil, disseminando não só modelos de turbante, mas também conhecimento.

Para a entrevistada, é fundamental falar da contribuição dos Iorubás, antigamente chamados de Nagôs, para a cultura brasileira. Contribuição essa que se deu inicialmente e principalmente na Bahia, onde nasceram o candomblé, a umbanda e outras religiões de matriz africana. O panteão – conjunto de deuses de uma religião politeísta – dos Orixás é Iorubá, bem como o acarajé, o tão usado azeite de dendê, a farinha de mandioca, o brasileiríssimo ritmo ijexá, entre diversos outros, e também as influências iorubás no campo da expressão corporal.

 

O que é um turbante?

Turbante é uma amarração, feita à mão, de um lenço que se usa na cabeça.

A mulher que aparece na foto é própria Thaís (Imagem: Reprodução/ Ica Martinez)

Ainda assim, ela pode contar com costuras ou alfinetes e grampos como os gelés nigerianos. O modo de amarrá-lo varia dependendo do papel social, da localização geográfica, da religião e do gosto de quem o usa. Existem as possibilidades preestabelecidas de amarração, que atualmente aparecem muito em tutoriais – nas plataformas virtuais, por exemplo – e as formas que são feitas como produto da criatividade de cada um.

O lenço é outra variável tanto em forma (pode ser quadrado, retangular, triangular), quanto em medida. Thaís chegou à conclusão de que lenços de 1,80m x 0,40m são ideais para os modelos de turbante com que trabalha. Mas há muitas dimensões possíveis. Há turbantes indianos que chegam a usar nove metros de tecido.

 

O que diferencia um turbante de outra forma de se colocar um lenço na cabeça?

“Nem todo lenço amarrado na cabeça é um turbante”, mas dependendo da forma e do usuário, pode vir a ser: “No meu ponto de vista [o que diferencia] é o pertencimento, a conexão, seja social, religiosa, política ou estética. O turbante é um símbolo”. Essa simbologia na Diáspora Negra se conecta com a identidade cultural e o reconhecimento do objeto. Thaís afirma que mesmo se o uso assumir apenas o caráter estético para pessoas negras, ele é importante, porque, por muito tempo, usá-lo não era uma opção de bom gosto, a não ser que fosse como fantasia de carnaval, ou se a pessoa fosse branca.

Sob uma perspectiva mais objetiva, ela diz que o turbante normalmente cobre toda a parte de traz da cabeça – mas há exceções. No mais, Thaís pontua que a característica de o turbante ser modelado à mão o distancia de algumas “touquinhas”, que, na realidade, são apenas inspiradas nele.

O gelé nigeriano é uma exceção à maior parte dos turbantes, que cobrem toda a parte de trás da cabeça (Imagem: Reprodução/ Wiki Commons)

Sobre sua origem étnica, cultural e histórica

Thaís explora a multiplicidade de compreensões dependentes de etnia, cultura e momento histórico ao redor do turbante. Segundo ela, civilizações muito antigas como as da Mesopotâmia e da Índia são as precursoras. Os muçulmanos do Oriente Médio disseminaram, no século IX, o uso do turbante por várias partes da África, e o clima e as tradições se encarregaram de dar-lhe significados.

Ela conta que as amarrações de cabeça foram obrigatórias durante o colonialismo em várias partes do mundo, principalmente nas colônias Afro-Atlânticas. “Os carrascos donos de escravos e os mercadores tinham muitas formas de erradicar o senso de cultura e identidade dessas muitas etnias que foram conduzidas na Diáspora forçada da África”. Uma dessas formas era um sistema de mesclagem das etnias para evitar a comunicação, já que falavam línguas diferentes. Outra era raspar os cabelos de todas as pessoas e as obrigar a utilizar um pano enrolado na cabeça.

“O cabelo é uma forma de comunicação não-verbal para muitas culturas africanas. A forma de usar o cabelo diz sobre a região e o grupo étnico. Havia a padronização dos escravizados através da roupa e dessa amarração na cabeça”. É também por conta disso que, hoje, tanto se fala do cabelo enquanto via de empoderamento individual, étnico e cultural.

Segundo a pesquisadora, no começo, essas amarrações eram obrigatórias para ambos os sexos, mas posteriormente tornaram-se essencialmente femininas, e auxiliavam na proteção contra a exposição ao sol. “Em alguns registros visuais temos o exemplo do turbante em ganhadeiras, as escravas de ganho, que eram semi-livres, porque podiam caminhar pelas ruas vendendo comida, frutas e prestando serviços”.

No período do Brasil colonial era, inclusive, possível identificar a etnia de algumas mulheres pela forma que elas amarravam esses panos nas cabeça. São exemplos dessas etnias: Jeje do Benim, Nagô-Yorubá, Banto do Congo e Malês. ”Acredito que a memória do uso dos turbantes nas suas terras originais as faziam amarrar da mesma forma”.

As ganhadeiras vendiam comida com as bandejas na cabeça, ou ainda em pontos fixos, o que era menos comum. Posteriormente, inauguraram a tradição do que seriam as baianas de acarajé. “Elas eram muito importantes para a comunicação entre a casa-grande, a senzala e os quilombos, porque ouviam muito pelas ruas e faziam com que a informação favorecesse os levantes de libertação”. Com o dinheiro que faziam, mesmo entregando a maior parte para os senhores de engenho, elas conseguiam juntar para pagar pela própria liberdade e pela liberdade dos seus. “Essas mulheres foram muito abusadas sexualmente, mentalmente, e fico irritadíssima ao ver que a representação mais popular das baianas de acarajé é a Carmem Miranda, uma mulher branca e portuguesa.”

Com a narração dessa memória coletiva, pode-se dizer que as baianas do acarajé são tidas por muitas mulheres negras de hoje como símbolo de força. Têm um lugar quase maternal de demonstração daqueles que transformam sofrimento em determinação e batalha diárias. Fizeram uma metamorfose de dor em História, não só delas como indivíduos, mas como participantes ativas e engajadas em questões grupais.

Gravura de escravas, Jean-Baptiste Debret. Rio de Janeiro, 1835 (Imagem: Reprodução)

Um pouco da história do turbante na América

“Você já ouviu falar do Madras?”, pergunta Thaís. “É um tipo de tecido de algodão com estampas quadriculadas coloridas originais da cidade de Madras”. Ela se refere à atual Chennai, na Índia, e conta que o tecido ficou muito popular nas colônias francesas creoles do Caribe, como em St. Lucia, Dominica, Martinica e Guadalupe, por volta de 1800. “Lá, os escravizados africanos, nos dias comuns, eram obrigados a utilizar roupas de uma cor só, que eram basicamente uma monopeça com buracos para braços e cabeça. Uma espécie de mortalha.”

Mas a pesquisadora ressalta que, aos domingos e feriados, era possível escolher o que vestir. Normalmente, optavam por usar roupas produzidas em Madras, compradas com o dinheiro das pequenas vendas de produtos que eles mesmos produziam. “Em dias de festa e ocasiões especiais, mulheres livres e escravizadas usavam essas roupas coloridas, que posteriormente ficaram conhecidas como ‘roupas de crioula’.”
O Madras também deu nome ao traje típico dessas regiões caribenhas, o qual é composto por 5 peças individuais, sendo elas: uma camisa e uma saia comprida até o pé, feitos em algodão branco ou outro tecido liso; uma saia mais curta por cima; um lenço dobrado como triângulo usado como xale, com as duas pontas presas na saia ou amarradas; e uma peça de cabeça (normalmente uma espécie de turbante), estampada em Madras, e usada por mulheres de todas as idades, desde as crianças.

O “Tête en l’air”, ou “Madrase” é uma amarração de cabeça (com um lenço quadrado ou retangular) que pode ser feita na forma cerimonial, ou para mostrar a disponibilidade das mulheres: tudo vai depender de quantas pontas esse “turbante” vai exibir. Thaís explica que, se a amarração é em um modelo que deixa uma ponta para fora, quer dizer que a mulher é solteira; com duas pontas para fora significa que ela já foi cortejada, mas ainda está aberta para outras possibilidades. Já com três pontas significa que ela é casada, que seu coração já está ocupado e que ela não tem intenção de ser influenciada por nada. Com quatro pontas, significa que ela “basicamente tá pra jogo com quem chegar”, brinca.
Entretanto, a maioria das mulheres parou de usar o Madras e o Madrase em meados 1900, por considerarem o estilo ultrapassado e quererem usar uma moda mais moderna. Além disso, depois da abolição da escravatura nas colônias da França – em 1794, com a Revolução Francesa -, as pessoas negras queriam se afastar de tudo que lembrasse a escravidão.

Em 1980, madrases e calendées (outro tipo de adorno de cabeça típico da Martinica, que assemelha-se a um chapéu e é dobrado como um leque) foram reavivadas como parte importante da cultura desses lugares. Justamente nessa década, houve um fortalecimento do movimento negro. Além de colocar novas pautas em questão, apontou um novo olhar a elementos que, como o madrase, tinham feito parte de suas Histórias.

O Madras enquanto tecido foi utilizado em diversas formas. Turbantes antigos feitos com ele se tornaram roupas de cerimônia usadas em casamentos, formaturas e reuniões formais, com designs mais modernos. Além disso, ganhou uma sessão especial nas lojas de tecido. “O Madras enquanto traje típico continua sendo usado em datas como o dia da Independência, no Dia Nacional e no Dia Creole”. Ela lembra de nossas festas de São João, já que o padrão xadrez é também usado para dançar Quadrilha, adotada como uma dança nacional do interior. “É um grande mix. Tudo conectado nessa Diáspora Negra. Temos recriado símbolos que podem até se iniciar com a colonização, mas os transformamos para entender e ressignificar a história que seguimos a escrever.”
Sob o aspecto da relação objeto-povo, acompanhamos em nosso próprio continente a narrativa de um tecido importado por um povo oprimido de outro povo também oprimido. Ele, a princípio, era escolhido como algo melhor do que uma vestimenta que simbolizava visivelmente a dominação, a peça que lembrava uma mortalha. Depois, o mesmo foi incorporado às práticas de estilo das negras no formato de um turbante. Vimos que as vestimentas feitas com esse tecido, justamente pelo seu uso relacionado às escravas, tiveram sua reputação diminuída à época ao tornar-se conhecido como ‘roupa de crioula’.

Após a abolição, os negros afastaram-se tanto do madras (roupa) quanto do madrase (turbante). Esses itens claramente atrelavam-se à sua cultura, como fica demonstrado pelo costume das pontas. Na verdade, a busca era pelo afastamento de uma condição: a de escravizado. E, por enquanto, parecemos ter um final feliz para ambos os Madras, reacendidos e enaltecidos enquanto símbolos de orgulho. Isso se dá em um contexto de fortalecimento social, ligado a um processo complexo de interconexão e recompreensão culturais.

 

Turbante e resistência


Thaís declara que “por séculos todos os padrões de beleza que foram validados para nós são brancos ou embranquecidos.”. Ou seja, priorizam os valores estéticos brancos. “Por muito tempo, mulheres foram obrigadas a usar amarrações de cabeça como se isso fosse uma coisa ruim. Mas isso era parte do cotidiano estético de inúmeras culturas, não só africanas, e tudo foi criminalizado”. Ela exemplifica que homens muçulmanos são tidos como terroristas. Rastafáris, como drogados. Pessoas mudam de lugar quando uma mulher negra entra em um ônibus de turbante. Segundo a pesquisadora, houve uma domesticação e subjugação de um símbolo que renasce como alternativa para reconexão.

“Há tantas mulheres que passam pela transição capilar e, através do turbante, experienciam mais da própria beleza, da própria história, e mesmo do racismo.” Para ela, o grande problema é que tanto a transição quanto o uso do adereço só viram tendência quando um corpo branco as válida. Thaís pensa que a internet e as novas mídias têm permitido que as pessoas se aproximem do que é mais real pra elas. Como vimos, a discussão sobre Apropriação Cultural em relação ao turbante só se tornou super popular e conhecida porque uma garota branca teve um direito questionado. “Isso reverberou muito mais do que a garota negra que teve o turbante arrancado em uma festa de formatura. Essa falta de importância é sufocante”. Ela diz que usar um turbante enquanto mulher negra é um ato político. “Eu consigo enxergar a nossa geração colocando o turbante enquanto um dos protagonistas da ressignificação estética e política.”

Mas por que não usar?


Note que o caso do turbante é diferente do caso do Mehandi. O do turbante começa em uma árvore genealógica em que aparecem muitas etnias que atualmente compartilham um status de subjugação em uma visão macro das relações entre povos. Passa por um momento de incorporação às culturas africanas, há mais de um milênio e, posteriormente, em um intento colonizador de varrer qualquer senso de identidade pela América, de modo amplo, associa-se à marginalização do negro.

Depois, segundo Thaís, o item que, em sua obrigatoriedade, era para banir manifestações de beleza e identidade se transforma em um meio para uma conexão muito maior, na qual, ao invés de esconder, realça e mostra. Uso que se reintensifica na Diáspora e, justamente partindo do status de ferramenta de opressão, torna-se parte de um senso de identificação quase ideológica, religiosa, ou apenas estética e se popularizar gradualmente, estando, hoje, ressignificado.

Essa ressignificação é uma vitória para toda uma congregação étnica. Em um processo de reconexão, não apenas exalta, em um apelo metonímico, toda a riqueza cultural africana – línguas, religiões, ritmos, saberes. Ela simboliza resistência e auto-afirmação, demonstrando as intenções desses povos de ocupar um lugar que é seu em uma sociedade ainda em processo de avanço contra o racismo.

O histórico de opressão é inalienável do objeto turbante em si. A História está na coisa e a coisa, na História.
Considerando tudo isso com predisposição para entender essas sutilezas (nem tão sutis) do passado, que muitas vezes se estende ao presente, é difícil que prevaleça a ânsia pela intocabilidade da liberdade de expressão.

Esse é um tema maior, que envolve História, dominações, conflitos, resistências, identidade, violência, séculos, memórias coletivas – além de estética.  É incipiente alguém que simplesmente não se relaciona ao passado contínuo do turbante querer afirmar seu direito de usá-lo apenas pela estética. É possível, ainda, que esse alguém esteja no lugar social oposto ao daqueles que buscam a autoafirmação étnica e cultural desse item. Lugar esse que, intencionalmente ou não, acaba gerando essa necessidade de autoafirmação.

Vale também a percepção de que, nesse caso, a possibilidade de usar um turbante para exaltar ou homenagear esses povos não cabe. Isso contribui com a manutenção da prática em que, no fim, só se legitimam elementos de culturas subjugadas quando há o reconhecimento, a valorização e, dessa vez, a apropriação deles por pessoas social e historicamente privilegiadas.

Além disso, na realidade, esse uso não se concretiza enquanto via para a valorização daqueles que devem ser valorizados em relação ao turbante. Há pessoas brancas que usam o item esperando contribuir para o enaltecimento das culturas africanas e, por conseguinte, dos africanos. Contudo, isso simplesmente não acontece. Quando se vê um branco de turbante não existe um gancho mental que traga o negro à tona.

Não é automático reconhecer o ‘mérito cultural’ dos afrodescendentes a partir da visualização da figura branca que usa o adereço. Se mesmo no âmbito cultural não acontece a valorização de quem se esperaria, é muito improvável que essa ação branca impacte os afrodescendentes no campo social, o que, então sim, poderia impactá-los individualmente. E nem teria porque esse uso converter-se em enaltecimento negro. Afinal, nesses casos o turbante se transfigura apenas em um item de estilo para quebrar um pouco a homogeneidade das referências brancas usuais.

 

Véu Islâmico: “Louvável carregar esse tipo de mensagem”

Nem todo árabe é muçulmano e nem todo muçulmano é árabe. Mas a maior parte dos árabes é muçulmano. O contrário não procede – a maior parte dos muçulmanos não é árabe.

“Árabe” refere-se a uma etnia, relacionada àqueles que têm a língua árabe como oficial, e muçulmano, a uma religião, o Islamismo. Por tratarmos aqui do Véu Islâmico, pode-se dizer que abordaremos mais uma Apropriação Religiosa do que Cultural, propriamente, apesar de cultura e religião estarem relacionadas. Persas, turcos e etnias africanas, por exemplo, também se relacionam ao Islamismo.

Vamos a uma série de confusões: entre árabes e turcos (etnias diferentes), entre islâmicos e árabes, entre muçulmanos no geral e extremistas.

No senso comum, ser árabe e ser muçulmano se confundem. Por isso, uma opressão que vemos atualmente, é aos árabes. E se é assim, considerando a terceira confusão, todo árabe é extremista.

Há na dificuldade dos árabes em conseguir vistos para países ocidentais, ou mesmo refúgio, após o 11 de setembro; nos casos como os daqueles que esperam outro trem ou elevador quando há uma mulher usando véu islâmico nele; nas piadas em que perguntam a emigrantes do Oriente Médio se carregam bombas em seus corpos uma espécie de “prevencionismo” contra os árabes – que pode ser considerada opressiva.

Todas essas situações citadas, e muitas outras, são mais frequentes do que parecem – inclusive no Brasil, onde parece que os árabes, todos, são muito bem recebidos e fazem um grandíssimo sucesso com seus restaurantes tradicionais. O mesmo vale para os turcos, que, confundidos com árabes, acabam passando por situações semelhantes.  

Najla Nimri é uma jovem muçulmana com quem conversei sobre questões islâmicas. Hoje vive com sua família em São Paulo, mas o lado paterno veio de uma cidade libanesa, Barilhes, onde ainda residem muitos parentes. Como Najla, existem muitos muçulmanos que já sentem uma piora nesse clima de opressão após a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. Em suas convicções, o presidente incentiva e legitimiza preconceitos, estereótipos e exclusões.

A contribuição dos árabes à cultura é muito estruturante e geral. Exemplos bastante recorrentes atribuídos a eles são em relação à matemática, medicina, arquitetura, química, astronomia, literatura e filosofia. Isso além da culinária, mundialmente disseminada e estimada.

 

Apropriação

O caso da supermodelo Gigi Hadid, em março de 2017, suscitou a reflexão acerca da apropriação desse item religioso. Em ensaio fotográfico para a Vogue Arábia, ela usou um hijab, o que tentou ser justificado pela sua meia descendência palestina. Por mais que a maior parte dos palestinos seja muçulmana, a modelo não é. Se o item em questão fosse cultural dos palestinos, não haveria problema.

O ensaio é tão questionável quanto se, no Brasil, um país majoritariamente católico, precisássemos de uma foto de alguém com uma cruz para a Vogue brasileira e escolhêssemos um judeu, porque ele é brasileiro. Isso sem considerar que mundialmente os muçulmanos sofrem muito mais com os estereótipos e os preconceitos do que os católicos. Mais que um acessório fashion, usar hijab, no ocidente, é um ato de coragem, de autoafirmação religiosa e de enfrentamento da hostilidade e intolerância.

Usar o véu pontualmente para a sessão de fotos – colocar e tirar, de acordo com seu interesse momentâneo – já indica quão alheia ao Islamismo Hadid é.

Para Najla, pode-se usar certo lenço na cabeça, por questões estéticas, desde que isso esteja clara e completamente separado do quesito religioso. Nesse caso não há problema algum. Mas no caso de Hadid, considerando o contexto da “Vogue Arábia”, fica explícita a tentativa da construção de uma figura que usasse não apenas um lenço na cabeça, mas sim um hijab.

Isso se torna um problema. Primeiro, banaliza um item religioso, que é apenas parte de toda uma crença, de comportamentos e concepções próprias. Segundo, tira o lugar de uma modelo que realmente usa hijab e, por conta disso, já deve ter menos oportunidades de ser contratada para qualquer ensaio. Mulher essa que mantém, diariamente, viva a tradição que, enquanto produto fotográfico,  se converte em capital à revista.

O que é véu islâmico

Véu islâmico é um item religioso. Um lenço fino que é amarrado na cabeça, usado por mulheres muçulmanas. Há tipos diferentes de véu, como o hijab, a burca e o xador:

“Tipos de véus islâmicos”: diferentes tipos de véus são utilizados em situações e regiões variadas (Imagem: Reprodução/ Barrington Stage Co.)

Origem

O véu acompanha a religião desde seus primórdios, com Surata no alcorão dizendo às mulheres que: “Cubram-se”. Marília Fiorillo têm doutorado por tese sobre História das Religiões, pela Universidade de São Paulo e atualmente leciona na Universidade. Com ela conversei a respeito de aspectos teóricos que circundam a questão do item relacionado ao islamismo.
Segundo Marília, Karen Armstrong, autora especialista em temas religiosos, no seu livro ‘O Islã’, conta que o véu foi inicialmente concebido como marca de distinção para mulheres da elite em torno de maomé. O equivalente a uma coroa, guardadas as proporções.  A professora aponta que o Islã, em seus primórdios, era mais condescendente com as mulheres que o Cristianismo. “As mulheres árabes podiam herdar fortunas. Maomé casou-se com uma rica viúva, sua patrocinadora. Ela tinha um parente cristão, que, por sua vez, foi um dos mentores do profeta quando teve as primeiras visões.”

No livro, Armstrong também fala sobre a carga crítica do véu em relação a alguns aspectos da modernidade ocidental: o exibicionismo, a perseguição à jovialidade, o materialismo (em relação ao corpo físico) e o individualismo. “O véu desafia a estranha compulsão ocidental de revelar tudo quanto a assuntos sexuais”, escreve. No Ocidente, as pessoas mostram seus corpos bronzeados e bem moldados como um sinal de privilégio: tentam impedir o envelhecimento e se agarram à vida terrena. “O corpo islâmico coberto declara que se orienta para a transcendência, e a uniformidade do traje elimina a diferença de classes e acentua a importância da comunidade, maior do que a do individualismo ocidental.”

 

Por que usam véu?

Ele representa um estado espiritual e um nível de fé elevados, “principalmente porque não é uma coisa fácil”, segundo Najla.

Em suas palavras, na visão islâmica, a “maior vaidade” feminina é o cabelo. Ao colocar o véu, a mulher muçulmana assume uma posição de quem se resguarda a seu marido, como em sinal de respeito.

Para o resto da vida da mulher que usa véu, os únicos homens que a verão sem ele, além de seu marido, são os homens de sua família mais próxima, ou seja, aqueles com os quais ela não poderia se casar.

 

Variações

Tratando-se de algo que acompanhará a mulher “pra vida toda, até morrer”, o véu varia de acordo com a ocasião. No caso do hijab, por exemplo, há aqueles mais cotidianos e os mais arrumados. Pretos, coloridos, estampados ou até versões atuais com ouro são possibilidades. Normalmente se coloca uma “touquinha” embaixo e o lenço por cima. O hijab é tão diverso quanto permitem os lenços e amarrações de suas pontas (normalmente mais lateral, frontal ou traseira).

Mulheres muçulmanas se manifestam propondo um olhar diferente sobre o hijab (Imagem: Reprodução/ Express – File)

Decisão

Para Najla, decidir por colocar o véu deve ser algo feito de maneira responsável e madura. “É amor, você simplesmente sente quando é a hora certa. Eu conheço muita gente que colocou, mas não estava preparada e depois tirou, o que é visto como bastante ‘feio’ na religião”. Isso considerando que, em tese, a mulher pode fazer essa escolha em qualquer momento de sua vida – inclusive antes do casamento, demonstrando valorizá-lo e sinalizando respeito ao futuro marido. Ou, ainda, não colocá-lo, mesmo que, na prática, haja a expectativa externa da família e dos conhecidos, por exemplo, pelo uso do véu, o que pode acabar pressionando essa decisão.

Ainda assim, a ideia é que seja uma opção própria da mulher, no momento da sua vida que se sentir pronta para se comprometer realmente a esse uso. Najla defende que o uso do véu só se torna opressivo quando feito obrigatório. Há movimentos que, aparentemente, se levantam contra o uso do véu, como o que demonstrou-se em um protesto feito por uma série de mulheres no Irã, em janeiro desse ano. Foi um desencadeamento de um outro protesto, feito pela iraniana Vida Mohaved, em dezembro do ano passado.

Contudo, o que realmente motiva essas reivindicações é a obrigatoriedade em relação ao uso véu, e não propriamente seu uso. Algo que ajuda a compreender esse fervor de revés à obrigatoriedade e, na verdade a uma opressão maior, é o fato de que Mohaved acabou detida por expor-se no centro da cidade de Teerã, capital do Irã, com seu hijab amarrado em um galho e cabelos à mostra. Pelo menos outras seis mulheres, que reproduziram esse ato simbólico no protesto seguinte, foram reprimidas da mesma forma.

A forma de protestar encontrada por Vida e reproduzida por outras iranianas (Imagem: Reprodução/ Abaca Press – Sipa EUA, via AP)

Enquanto lei, o uso do véu mostra-se uma imposição em alguns países, como o Irã. Não só autoriza a violência àqueles que descumpram essa lei, como é violento em si, em uma visão secularizada, a partir do momento em que o indivíduo fica parcialmente privado de exercer sua liberdade. Com isso, um elemento religioso acaba ficando associado à opressão, sem essencialmente ou necessariamente ter esse teor.

A muçulmana comenta ainda que os extremismos não são exclusividade do islamismo: todas as religiões têm vieses e vertentes que tendem a isso, mas não se cria um estereótipo em relação a todos os seus fiéis. Pode-se propor que a Santa Inquisição foi um extremismo católico, a Ku Klux Klan, protestante e o comportamento violento e irredutível israelense atual em relação aos palestinos, um extremismo judeu.

 

Anfifílico

Segundo a professora Marília Fiorillo: “O véu, em si, não é opressor nem protetor, nem ícone de protesto. É um costume.”

Como opressor já tem-se o exemplo do Irã, mas a perspectiva possivelmente inesperada do véu enquanto protetor em potencial foi ilustrada por Marília em um caso no Afeganistão: “Ele pode ser também um aliado das mulheres”. Após a retirada russa em 1989, o país estava dominado pelos senhores da guerra, facções que lutavam pelo controle liberal-capitalista da região. Nesse contexto, o uso da burca salvou muitas jovens do estupro. “Há um documentário antigo da BBC que mostra como as mulheres, sobretudo as jovens, se sentiam mais seguras sob a burca, protegidas da violência predatória masculina.”
A professora ainda destaca a recente consideração da ONU (Organização das Nações Unidas), que coloca o estupro não como dano colateral, mas como arma de guerra, tanto quanto fuzis ou bombas.

É válido frisar que cobrir mulheres passa longe de ser uma solução ideal para a questão do estupro. Limitar sua liberdade por assumir que brutalismo é intrínseco ao homem é um absurdo. Mas deve-se considerar que a situação em pauta era de exceção: uma situação de guerra. Certas medidas de emergência passam a ser úteis. Andar de burca, nesse caso, teria sido quase como andar com um colete à prova de balas.

Tanto quanto na associação à opressão, o véu pode ser associado à proteção. Essas são duas esferas igualmente alheias ao costume de seu uso.

 

Enquanto costume

O véu, na prática, se mostra maior do que algo que simplesmente se veste. Está atrelado a uma questão mais abrangente de comportamento.

A ideia de estar com o véu é a de chamar o mínimo de atenção possível. Por isso, quando se usa o lenço, no caso do hijab, por exemplo, só podem ser mostrados o rosto, as mãos e os pés. Outras partes do corpo não podem estar expostos, o que justifica o visual comum de calças ou saias longas e blusas de mangas compridas (casharrel) das mulheres muçulmanas que já usam o lenço. Usar decotes ou roupas que marquem a silhueta não conflui com a ideia por trás do véu. Roupas largas e fechadas, portanto, são as preferidas por essas mulheres.

Essa lógica ocorre na questão geral do vestuário, e se expande: “A partir do momento em que você põe o véu, as suas ações têm que mudar, as suas vestimentas mudam, a maneira como você fala. Você tenta chamar o mínimo de atenção possível, porque isso justifica a ação de colocar o lenço. Não é só o lenço, ele é a cereja do bolo.”

 

Machista?

Najla também não enxerga no véu uma forma de machismo, pelo fato de o seu uso, novamente, dever ser uma opção própria. O sentimento é de orgulho em colocar o véu e fazer as abdicações necessárias em nome da fé, do seu marido e do seu casamento.

 

França

O caso francês não é necessariamente o melhor para se observar a opressão específica àquelas que usam véu, por mais que, no geral, seja o mais recorrente nas discussões.

Pela lei de 2004, que proibiu o uso do hijab nas escolas públicas, e pela mais recente, de 2014,  que veta o do niqab e o da burca, parece que se tem uma perseguição às práticas muçulmanas no país. É provável que haja, mas é importante esclarecer que o caso francês envolve assuntos e compreensões mais estruturais sobre como se dá a laicidade do Estado.

No Brasil, por exemplo, está consolidado que a melhor forma de ser laico é permitir as expressões religiosas dos indivíduos no espaço público. Porém, essa concepção se choca com a francesa, uma vez que, na organização deles, ser laico é não permitir expressão religiosa alguma nesse espaço. Na visão deles, a boa convivência se dá por essa via restritiva e de indiferenciação dos cidadãos pelas ruas, escolas, praças. Não só é restrito o uso da burca, mas também do crucifixo ou, em tese, de qualquer outro item religioso.

Ainda são proibições questionáveis, uma vez que uso do quipá, por exemplo, é apenas desaconselhado, mas não ilegal. Valeria ponderar quanto os outros itens têm essa característica da irremovibilidade na liturgia de suas respectivas religiões em comparação, por exemplo, ao véu no islamismo e, com isso, verificar se realmente as proibições são simétricas.

 

Sobre árabes e persas

Existem duas vertentes islâmicas, a xiita, historicamente mais radical e a sunita, mais moderada, ainda que o Estado Islâmico (ISIS), que representa o extremismo em escala mundial atualmente, seja sunita.

Normalmente os países persas, como o Afeganistão (sunita) e o Irã (xiita), são mais radicais quanto à conduta feminina. O segundo tem, por exemplo, uma polícia da moral, responsável pela repressão das manifestações iranianas antes citadas. Isso porque, após a Revolução Iraniana, em 1979, fez-se do país uma república teocrática pautada nos preceitos do Islamismo. E o primeiro tem o Talibã, que impõe um comportamento extremamente silenciador às mulheres do país. Dentre as restrições às afegãs, estão a proibição de rir alto – nenhum estrangeiro pode ouvir a voz de uma mulher -, de falar ou apertar as mãos de um homem não-mahram (da família próxima, como pai, marido, ou irmão), de ouvir música ou assistir a filmes.

Tudo isso se traduz no vestuário feminino. Através da burca, o Estado visivelmente busca esconder e emudecer as mulheres. Calças não podem ser usadas sequer por baixo dela. O nível da opressão dessas mulheres se expressa no fato de que aquelas que não escondem seus tornozelos são vítimas, hoje em dia, de açoite público.

Nos países árabes, no entanto, como a Síria e o Líbano (sunitas), é mais comum que esse radicalismo se dê no âmbito familiar (quando se dá) uma vez que, segundo Najla, mesmo no Oriente Médio, as famílias radicais são muito poucas diante da maioria esmagadora, que é mais moderada, ainda que também siga os mandamentos e as práticas da religião. Por isso, nesses países, o modelo mais recorrente de véu é o hijab, que permite as cores e estampas. Isso se opõe às burcas persas, normalmente de cor única – na maior parte das vezes preta -, uma vez que é entendido que mulheres que usam cores tornam-se atrativas sexualmente, o que deve ser reprimido.

O Iraque é um exemplo de exceção: país árabe que, por conta de ser majoritariamente ligado à vertente xiita do islamismo, é mais extremista em relação ao uso do véu e em outras questões religiosas.

 

Histórias na religião

Em Medina, na Arábia Saudita, o Profeta Maomé (que a paz de Deus esteja com ele) foi enterrado. Ao lado dele seria o túmulo do pai de Khadija, primeira esposa de M. Mas Abu Baker Sadik. Um amigo do falecido pediu à viúva para que fosse enterrado ao lado dele, e ela, por sua vez, concedeu tal permissão. Com isso, toda vez que ela ia visitar o túmulo de seu marido, tinha que ir de lenço, pois o amigo estava enterrado ao lado. O local aonde se vai para estas visitas é subterrâneo. Ela estaria ali apenas na ‘companhia’ dos falecidos. Sendo assim, caso os enterros tivessem sido como o programado, ela poderia ir sem o véu, uma vez que só estariam ela, seu pai e seu marido. O ato de persistir indo com o véu, na visão islâmica, se consolida como forma de respeito ao marido mesmo após a sua morte, uma vez que o amigo estaria lá tanto quanto o próprio marido.

 

Riqueza da humanidade

Dentro do possível ao longo do tempo, e da evolução material que o acompanhou, o mínimo se mudou da prática do uso do véu. O símbolo do comprometimento com a religião persiste e, pensando nisso, Najla comenta sobre a riqueza de ainda termos véu hoje: “Acho louvável carregar esse tipo de mensagem, mostrar para quem realmente conhece a história o porquê a gente usa. É um resquício da cultura, uma coisa que vai perdurar por muito tempo, é uma riqueza sim para a nossa religião, acho que é um exemplo para muitas outras.”

 

Cocar: “ Só quem é índio sabe”

Quando o português descobriu o Brasil, esqueceu-se de contar, propositalmente ou não, que havia naquelas terras desbravadores mais pioneiros do que ele. Eram esses os indígenas, em suas nações instaladas, de sul a norte, sobre o chão do “Brasil” que mais tarde viria. Diferentemente do caso do negro, a Igreja, especificamente os jesuítas, tentou se posicionar de modo a proteger os indígenas da violência e da escravidão. Responsáveis pela evangelização dos nativos, lançaram mão de uma argumentação que seguia a diretriz da inocência do índio, dada a sua ingenuidade e não introdução, até então, à fé.

Isso colaborou com a construção da figura do “bom selvagem”, que se contrapunha, em grande parte das vezes, à tida pelo colonizador explorador. Precisando de mão-de-obra a baixo custo e de justificativa para tal, tendeu à visão do “indígena descivilizado”, selvagem, canibal, bárbaro e sem moral – claramente a cristã, nesse caso -, além de ocioso, para buscar afastar o indígena de um protocolo de tratamento entre iguais.

Reiluminando esse passado, vê-se que, sim, houve a escravização brutal de indígenas, a princípio na extração e exportação de produtos como o pau-brasil. Houve guerras contra essa dominação, entre armas de fogo europeias e armas brancas locais. Houve, com isso, um grande etnocídio. No mais, a mortalidade indígena sofreu extrema elevação, devido à chegada de, com os colonizadores, doenças com as quais a América ainda não tinha tido contato e que, justamente por isso, acabaram tornando-se epidêmicas (varíola, peste negra e tuberculose, por exemplo).

Porém, em relação à situação atual do indígena no Brasil, tanto o “bom selvagem”, quanto o “índio canibal”, são opressivos, na medida em que folclorizam e estereotipam. Por conta disso, modernizam o alijamento dessas pessoas do status de igualdade no plano da cidadania. Até a narrativa monossêmica da dizimação indígena, que muitos aprendem na escola, oprime. Cria uma sensação de extinção dessa parte da população, quando, na verdade, essa deve ter, por direito, representatividade política, uma vez que existe e, sobretudo, resiste.

Dentre vários aspectos da opressão, um dos mais tangíveis e historicamente reivindicados é o da questão de terra no país. Se inicia, nos primórdios do contato do indígena com o homem branco, com a demarcação e a expropriação. Continua com a exploração inconsequente, seguida, em diversos locais, pelo esgotamento. Se atualiza na contiguidade da negação institucional de muitas terras aos seus primeiros donos.

Além desse aspecto, temos o nem tão popularizado conhecimento acerca da questão das patentes estrangeiras sobre produtos da medicina tradicional indígena. Empresas americanas, japonesas, francesas e inglesas registram patentes sobre tais produtos, ganhando exclusividade de comercialização em grandes escalas – às vezes, até em escala mundial. Os imperialistas usurpam de um conhecimento científico de séculos ao criarem patentes sobre ele. Privam os descobridores e preservadores, tanto das práticas, quanto dos próprios produtos, da participação devida segundo a mesma lógica, a do lucro.

Se consolida uma, dentre outras, apropriação e expropriação violenta daquilo que poderia ser uma grande riqueza nacional no sentido, não apenas do capital, mas também no da saúde. Se reconhecido, poderia servir como um contrafluxo ao aumento desenfreado e à banalização do uso descomprometido de medicamentos, uma vez que a medicina tradicional indígena é, na maior parte das vezes, preventiva.

Pensando em mais contribuições das diversas etnias indígenas, é provável que nos venham à mente dança, canto, culinária e língua (essa última com a influência principal do tupi e do guarani).

Patrícia Rodrigues, Pagu, é “índia”, em suas palavras, e pertence a duas etnias, a Guarani, por parte de mãe, e a Foniu, de pai. É também socióloga formada pela USP e milita pelo feminismo e pela indígena. Além disso, coordenou o movimento Guarani no litoral do estado de São Paulo.

Segundo sua leitura, é necessário ir além e perceber que essas contribuições são, na verdade, produto de uma filtragem colonial, da qual restou publicamente aquilo que foi permitido que ficasse na História e na cultura geral. Se não fosse o processo contínuo de violação de direitos e de massacre, estariam, ainda hoje, visibilizados tantos outros pontos da contribuição indígena ao Brasil.

O maior destaque do indígena seria, talvez, o contraponto ao modo de produção Moderno. O homem capitalista se afasta da natureza para explorá-la e, por conseguinte, acaba por estender tal exploração aos seus iguais, em suas relações interpessoais. Os indígenas, no entanto,  compartilham a concepção estrutural do respeito e ligação profundos à natureza. Nesse sentido, demonstra-se uma possibilidade de retomada de um outro tipo de relação – tanto com a natureza quanto com o próximo.

Esse entendimento dos indígenas sobre o funcionamento de tudo, muitas vezes confundido com ingenuidade, é, na realidade, a junção dos valores coletivos, políticos, do indígenas. Quando falamos em política, nesse contexto, queremos falar de sua definição mais ampla – a política tida em todo ato humano. E a confusão em relação ao entendimento indígena é fruto de uma hierarquização de modos de produção feita pela visão dominante, que, logicamente, priorizará o modo capitalista de produzir.

O conjunto de valores indígenas faz parte de seus cotidianos e estrutura suas ações desde que são pequenos. A incorporação desses valores acontece, muitas vezes, de forma mais consciente do que conosco, em relação aos valores do capitalismo.

Por essa visão de mundo semelhante entre os indígenas; por serem considerados próximos os pontos pelos quais lutam, inclusive no reconhecimento político; pelo fato de o cocar aparecer em várias culturas indígenas não só no Brasil, mas nas Américas, podemos falar em Apropriação Cultural dele de modo geral a quase todas as etnias relativas a tais visões, lutas e culturas. Isso ainda que, como no caso negro, haja uma grande quantidade de grupos étnicos indígenas presentes hoje.

 

O que é um cocar?

Cocar é um adereço que se usa na cabeça, feito basicamente com penas. Elas variam: de pato, galinha, arara, papagaio. Além delas é necessário algo para trançar as penas e amarrar o adereço na cabeça.

A peça se encontra no MAE-USP, que possui riquíssimo acervo de Arqueologia e Etnologia. Seus professores e alunos desenvolvem pesquisa de ponta nestas duas áreas e em Museologia. Também conta com exposições e outras atividades educativas (Imagem: Reprodução/ Wagner Souza e Silva – Revista Fapesp)

Respeitar a natureza ou matar aves?

Diferentemente do que se costuma pensar, os indígenas não matam aves para conseguir penas. Esses animais as soltam naturalmente em seus processos de renovação. Essas sim, na maior parte das vezes, são recolhidas e agrupadas para a produção do cocar.

 

Variações temporais e regionais

Ao longo do tempo, pode-se dizer que o cocar mudou pouco, quase o mínimo possível. Enquanto demonstração e consequência da preservação da cultura e dos costumes, o uso e a produção do cocar persistem bastante semelhantes aos formatos originais. Ao refletirmos um pouco mais, eu e Pagu pensamos que, hoje em dia, o fato do barbante ser o material utilizado para fazer as amarrações já se configura como uma mudança, ainda que sutil. Antes, provavelmente entravam fibras como a palha de bananeira ou de milho, dependendo da disponibilidade local. Apesar de pontual, essa substituição gradual simboliza, na visão da entrevistada, o aumento do acesso a recursos prontos e industrializados, de fora, o que não é apenas bom ou ruim. Isso porque, ainda que aos poucos os indígenas deixem de reproduzir com rigor as antigas técnicas por conta dessa comunicação, terão a possibilidade de usar produtos mais indicados para seus objetivos – como o barbante de algodão, que é provavelmente mais resistente que as fibras in natura. Para Pagu, o importante, sobretudo, é que se preserve a arte da confecção.

Ainda que seja bastante comum entre etnias de todas as Américas, há algumas diferenças que podem ser observadas. A primeira diz respeito às penas, uma vez que cada região possui suas aves típicas. De acordo com os animais que convivem com cada aldeia e sua visão de cada espécie, o aspecto final do cocar varia. A segunda encaixa-se no parâmetro do tamanho e posição. Dependendo da cultura da etnia, o cocar pode ser maior ou menor e usado mais verticalmente ou horizontalmente.

 

Simbologia

O mais importante na simbologia do cocar são realmente as penas. Elas representam uma conexão não só com a natureza (sobretudo com os animais), mas também, na visão geral dos indígenas, com o sagrado. Isso porque os pássaros normalmente trazem consigo o significado da aproximação ao plano espiritual.

Além disso o uso do cocar é valorizado por materializar uma relação de ancestralidade longínqua, pautada nos vínculos de sangue por gerações e gerações daquela etnia.

Ele ainda pode representar, dependendo da vivência de cada grupo étnico, “processos históricos, de vida e, inclusive, de sobrevivência”, diz Pagu.

A questão do tamanho e da posição também é representativa internamente, em cada aldeia, porque o cocar demonstra o nível de aprendizado dos indígenas. Ele indica quais funções cada pessoa já está pronta para cumprir, na lógica de que quanto menor e mais “baixo” (ou seja, mais horizontalizado), mais próximo do início do processo de aprendizagem o indígena está e mais novo ele é.

 

Quem usa cocar?

É um pouco parte da narrativa fetichizada e romantizada que nos contam a respeito do indígena a ideia de que o uso do cocar está atrelado apenas aos caciques e pajés. Na realidade, associa-se ao indígena de modo geral, com a ressalva de que as mulheres, no lugar do cocar, usam a tiara, um adereço também de penas e que circunda a cabeça. Caciques e pajés usam cocares maiores, mais compridos e “altos”, porque ocupam as maiores posições referentes ao nível de aprendizado individual. Ainda assim, nem todo indígena chegará a ser cacique ou pajé, mas terá uma trajetória de aprendizado, ao longo de sua vida, representada pelo seu cocar.

 

Como usa, quem faz e como começou

Diferentemente de um acessório que se usa o dia todo, como um óculos, o cocar não precisa ficar continuamente sendo usado. Dentro da aldeia ele pode ser posto e tirado de forma banal, mas há cerimônias e rituais específicos em que ele deve aparecer. Um exemplo, relativamente antiquado, desses momentos em que há necessidade do cocar é a situação de guerra, pelo menos se imaginada nos moldes em que era feita no passado. A caça persiste, até hoje, como uma prática em que o uso do cocar é imprescindível.

Cada índio tem a autonomia e a capacidade para fazer seu próprio cocar, mas, como em qualquer atividade, alguns têm mais facilidade que outros na hora da ação. Por isso a confecção, dependendo da elaboração e da habilidade de quem o estiver fazendo, pode levar, de um dia, a muito mais que isso. Um indígena também pode presentear outro com um adereço que produziu.

Provavelmente o uso do cocar surgiu simultaneamente em várias aldeias. Se originou em focos há uma unidade de tempo tão grande, que se torna imprecisa, relembrando seu grande teor ancestral e ressaltando sua relação profunda com as culturas em questão.

Outros elementos de cultura que se equiparam em importância e enraizamento ao cocar são, além da tiara, as pinturas corporais e o cachimbo.

 

Símbolo de resistência e patrimônio da humanidade

Por unir diversas etnias indígenas e por ter se mantido, representando uma forte ancestralidade, o cocar é tanto símbolo político de resistência quanto patrimônio da humanidade.

 

O enfeite e o sagrado

Há adereços que se relacionam ao sagrado, como o protagonista dessa parte da reportagem, e há outros que seguem mais a função do enfeitamento. Alguns brincos e colares não têm um significado exato, ainda que, dentro de suas culturas sejam símbolos formadores do senso estético e da beleza na perspectiva própria daquele povo. Dessa forma, há também uma relação estreita dos indígenas com esses itens. Estreita, mas não necessariamente estrita.

 

Por que não?

Segundo Pagu, cada situação tem uma gravidade. Usar um brinco feito por indígenas ou ter um cocar na sua sala (porque ele também expressa proteção) não é igual a se vestir de índio no carnaval ou usar um cocar para um ensaio fotográfico. Aproveitei para perguntar a ela sobre o uso de um brinco – um adereço com a função verdadeiramente de enfeite e que não carrega a simbologia da resistência – que comprei em uma aldeia em Porto Seguro. Ela me disse que, nesse caso, correspondente ao primeiro citado, é recomendável fazer esse uso com a consciência de que “na posição que você ocupa na sociedade, sendo branca, é muito diferente a forma que as pessoas vão te tratar por usar um brinco como esse e a forma que as pessoas me tratariam por estar usando um brinco como esse, e não um de pérolas, por exemplo”.

Quando fizemos a entrevista, ela estava com pinturas no corpo e no rosto, e ilustrou esse tratamento dizendo que seriam motivo para ativar o rechaço e a repulsa daqueles que a vissem daquela forma em outro contexto. A fantasia e o ensaio, no entanto, são desrespeitosos. Traçam-se enquanto utilizações fetichizadas do que é a questão do índio no país, reproduzindo, novamente, um estereótipo folclorizado e romantizado do indígena, um cidadão como qualquer outro. Assim, ainda que possa ter sido usado com a intenção de homenagear e inspirar respeito aos indígenas, demonstra a ideia, ao fundo, de que o respeito a essas pessoas derivaria do uso do cocar, quando ele é em si desrespeitoso. Esse respeito deveria ser inato, independente de outros fatores. É um desacato, também, na medida em que se apropriam de algo que tem uma simbologia, inclusive de resistência, e um significado maiores. Na cultura a que pertence, o cocar merece uma consideração especial.

 

Que consideração é essa?

No trecho mais comovido de sua fala, Pagu, com um tom de quem cuida, conta que o povo indígena sabe o que, não só o cocar, mas as pinturas e mesmo outras questões significam “no fundo e ‘aqui dentro’”. Ela cita um respeito primordial e profundo, além do afeto. “É muito incrível ser índio, não consigo dizer muito mais do que isso. Porque a gente que é sabe realmente o quanto é incrível”. Pagu ressalta a visão única que têm sobre o mundo e as coisas. A indígena se relaciona a perspectiva com “crença, carinho e pertencimento”.

“Às vezes eu fico reparando, os valores do homem branco são outros. São questões com as quais dificilmente me identifico, o que não quer dizer que não conheça ou saiba me relacionar com eles. Mas são outras concepções, realmente, das quais a gente parte, nas quais a gente se baseia.”

Não é incomum que a trajetória desses itens que permeiam a discussão se entrelacem. No geral, as culturas oprimidas se aproximam historicamente e compartilharam certas experiências, ainda que cada uma com suas especificidades. Talvez o grande determinismo relativo à Apropriação Cultural não seja apontar aqueles que podem usar certas coisas, mas sim aqueles que não podem usar certas coisas – os dominantes relativos a cada cultura feita dominada usarem os itens que a elas pertencem.

Sempre se pode saber mais a respeito das culturas em questão. Entretanto, em quase todas as entrevistas foi ressaltado, em algum momento, que as pessoas não entendem o significado dos elementos tratados. Talvez boa parte dessa incompreensão se deva, de fato, ao desconhecimento. Mas, ainda assim, muitas vezes, resta uma parcela incompleta do entendimento.

Ter um modo de ver construído; ser relembrado ao longo da vida de que pertence a certa cultura, pelo ambiente externo (de forma agradável ou não); ter de se impor politicamente em favor dos seus, e paralelamente a isso reconhecê-los pertencentes ao seu núcleo étnico e cultural. Tudo isso cria uma experiência compartilhável apenas até certo ponto. Como se explica o afeto ou o pertencimento, o sentimento de continuidade histórica? É uma vivência, algo que realmente se espalha por cantos diversos do viver de cada um. A explicação desses fenômenos é quase intrinsecamente limitada.

Além da dificuldade de passar a sensação adiante aos alheios, há, em alguns casos, uma ética, comentada ou particular, que põe restrições ao quanto se conta ao mundo externo sobre o interno da cultura. No caso das entrevistas, as representantes das culturas africana e indígena acabaram trazendo essa questão, quase sem querer. Thaís disse, ao receber as perguntas, que havia ali pontos que ela não costuma expor em entrevista. Pagu, quando a indaguei a respeito da existência de cerimônias e histórias tradicionais que envolvessem o cocar, após pensar um pouco, disse que havia, mas que não as poderia contar, por uma questão ética da comunidade indígena.  

É provável que não tenha sido uma coincidência o fato dessa preocupação ter aparecido em suas falas. Isso, porque, no Brasil, dentre as culturas tratadas, a indígena e a negra foram as mais desgastadas ao longo do tempo – o medo da diluição cultural é pertinente. É tomado um cuidado que inverte um pouco a lógica do texto. Assim caímos em um dilema: expor para conhecer e reconhecer de forma não estereotipada ou esconder para preservar essas culturas, ajudando a mantê-las longe do esvaziamento ao qual, por séculos resistiram.

Cabe justamente aos envolvidos estipular essa fronteira ao contar sobre a sua cultura. A quem está se informando, resta o interesse na conversa, até onde ela puder ir. Dialogar, perguntar, com respeito, é uma forma de visibilizar essas questões no âmbito individual, o que é válido e necessário. Segundo Pagu, é importante que no âmbito público nos posicionemos claramente em relação à Apropriação Cultural. Mas no individual, ainda que isso possa ser difícil, o guia é a mediação do diálogo por quem traz a problematização. Isso serve ao menos àqueles que estão sendo introduzidos ao assunto (talvez não aos que se negam continuamente a entender o desrespeito por trás da Apropriação). A dificuldade deriva do fato de que, nessas conversas, muitas vezes as pessoas acabam se reconhecendo enquanto racistas, o que é desconfortável.

Apesar disso e da não completude da compreensão, é importante mostrar parte do conhecimento relativo à cultura para plantar no outro a ideia da abrangência a que se relacionam aqueles itens.

Ainda para defender a relevância do diálogo entre os apropriadores em potencial e alvos da apropriação, é essencial considerar que existe a interferência do tênue na vida real. O que exatamente é um turbante? É necessário ter calma antes de condenar os outros, sobretudo quando não se tem conhecimento para tanto. Como a própria Thaís disse, provida de informação e lugar de fala, o que um julga como apropriação do turbante pode ser só o uso de uma touquinha, que em sua opinião, não representa um problema de apropriação.
Não é no campo da discussão em relação ao câncer que reside a pauta da Apropriação Cultural. Querer colocar essa situação como cerne do conceito é tão forçado quanto querer reduzir as eleições brasileiras à um segundo turno para a presidência entre Lula e Bolsonaro. E querer ainda dizer, em cima disso, quem é comunista e quem é fascista.

Essa não é uma discussão com linhas exatas, há especificidades, há contextos, há modos e há motivações para o uso. Isso acaba por fazer com que grande parte das vezes em que alguém usa um item de cultura seja digna de uma análise direcionada àqueles que a podem fazer da melhor forma, ou seja, aqueles que são internos àquela cultura.

Os externos, sabendo que não sabem nem saberão ao todo como é ser daquela cultura são responsáveis, então, por valorizar a ponderação feita. Isso vale para o geral das situações, porque, até nos casos em que o externo tem mais informações sobre a cultura do interno, a ambientação daquele que sofre tanto a opressão quanto o pertencimento é incomparável à daquele que conhece apenas a teoria.

Nesses casos, prevalece a experiência, recomenda-se o diálogo, propõe-se a disponibilidade para ouvir o outro e aconselha-se o culto ao bom-senso.

 

Um pequeno glossário:

 

Apropriação cultural: um fenômeno que se dá quando a cultura hegemônica se utiliza de aspectos de outras culturas, referentes a grupos sociais sistematicamente oprimidos. Essa utilização costuma ser considerada apropriação quando fetichiza ou estereotipa um povo; quando visa ao lucro exclusivamente; quando é reducionista ao alienar o objeto da sua concepção original, normalmente para fins estéticos; quando se atribui valor, seja pecuniário, seja simbólico, a um item de cultura sem que se valorize o grupo que o concebeu e preservou; quando ocorre com símbolos de resistência.

Lembrando que só existe apropriação cultural de um grupo opressor em relação ao povo que é oprimido pelo primeiro. Por isso usar calça jeans ou tocar guitarra não são, em nenhum contexto, passíveis de sofrer apropriação cultural. Estão relacionados a culturas de povos que mundialmente ocupam a posição de opressores, não oprimidos.

Lugar de fala: é o conceito que alega que em discussões sobre temas que possuem um grupo como alvo, deve prevalecer a perspectiva dos que pertencem à esse grupo. Em uma discussão sobre racismo, os negros e indígenas, por exemplo, tem lugar de fala; sobre machismo, o lugar de fala é das mulheres; sobre gordofobia, dos gordos; sobre LGBTfobia, dos LGBTs. A compreensão torna-se mais natural quando materializamos o conceito em: ” não se diz a um negro o que é racismo e o que não é”. Finalmente, o lugar de fala não proíbe que os não atingidos por determinada opressão também conversem sobre o assunto. Mas sim que, nessas ocasiões, prevaleça a perspectiva daqueles que realmente são alvo.

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