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Já pensou se a eugenia fosse institucionalizada?

Por Bruno Carbinatto (brunocarbinatto@usp.br)     “87% de pureza detectado. Requerido: 80%. Acesso liberado.”   Com um beep, a porta automática à minha frente se abriu, revelando um cômodo muito branco e muito limpo. Eu já estava acostumado com os laboratórios T4, então sabia exatamente o caminho para a sala de espera. No meu caminho, …

Já pensou se a eugenia fosse institucionalizada? Leia mais »

Por Bruno Carbinatto (brunocarbinatto@usp.br)

 

Imagem: Laura Barrio/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior

 

87% de pureza detectado.

Requerido: 80%.

Acesso liberado.

 

Com um beep, a porta automática à minha frente se abriu, revelando um cômodo muito branco e muito limpo. Eu já estava acostumado com os laboratórios T4, então sabia exatamente o caminho para a sala de espera. No meu caminho, telas piscavam mensagens coloridas, quebrando a monocromia do corredor quase hospitalar.

 

T4 e você: construindo um futuro melhor para nossas crianças.

 

Não havia seres humanos além de mim na sala. Um monitor ao meu lado garantia que eu pudesse solicitar água, trocar a música ambiente ou assistir a algum talk show qualquer ao invés do vídeo institucional incessante dos laboratórios T4 – privilégios de um 87% – mas eu simplesmente o ignorei. Por mais cômodo que seja, depender apenas de robôs é meio assustador.

 

O futuro é agora.

 

Já era a sexta vez no ano que eu estava sentado naquela sala. Uma vez por bimestre era requerido à todos os puros se apresentar para uma coleta de sangue e saliva, a fim de manter o banco de dados atualizado, e a espécie, salva. Tentei me lembrar de como tudo aquilo tinha começado, mas logo o monitor me avisou que seria o próximo a ser atendido.

 

A humanidade depende de você.

 

“Foi há uns 30 anos”, pensei, enquanto uma máquina retirava ampolas do meu sangue supervisionado por um médico tão branco quanto seu jaleco. “Eu era uma criança”. Mas não havia como esquecer. Estávamos em guerra, mas não sei exatamente contra quem. Contra todos e contra ninguém específico. O planeta afundava na fome, nos desastres naturais e nas doenças. Era o apocalipse tecnológico, tão imprevisível mas tão mortal. Lia-se nos noticiários que a comida ia acabar, que a água ia acabar, que a humanidade ia acabar – e então surgiram os heróis da nação. O governo forte e autoritário, o inimigo em comum, e o mais importante: o melhoramento genético. “É hora de usarmos a ciência a nosso favor”, eles diziam. E agora, estamos aqui.

 

A humanidade é uma só.

 

No início, eles atacaram as doenças genéticas. Não havia a possibilidade do discurso ser étnico – como fizeram os nazistas e os neodarwinistas antes deles – porque a sociedade já não aceitaria isso. O discurso ideológico jamais teria força na população… mas o discurso científico talvez tivesse efeito. O melhoramento genético seria utilizado apenas para garantir que a humanidade seguisse seu rumo através dos mais aptos, os mais avançados. Curiosamente, todos eram brancos. Criou-se um mecanismo de teste de pureza automático, “apenas para fins de pesquisa”, e que poderia ser utilizado antes mesmo da concepção, calculando a pureza genética de possíveis filhos de um casal, “para evitar deformidades de nascença”.

 

A mídia propagandeava o paraíso genético. Era o fim do câncer, da diabetes e da hipertensão. Poucos pareciam se perguntar o destino dos “não-puros”, e, em um contexto tão perturbado que vivíamos, as vozes deles pouco importavam. O povo finalmente veria a salvação das catástrofes que assolavam a Terra.

 

Mas então vieram as leis. Primeiro, todos deveriam se cadastrar no sistema T4. Depois, pessoas com menos de 50% de pureza deveriam se consultar mensalmente nos consultórios do governo. Com o tempo, casamentos entre puros e não puros foram proibidos, espaços públicos foram segregados e criaram-se “centros de pesquisa” próprios para não puros, dos quais nunca mais se ouviria falar uma vez que fossem internados. Mais rápido do que poderíamos perceber, a eugenia tinha sido institucionalizada.

 

O mundo ideal começa com você.

 

Mas é claro que ninguém utilizava essa palavra. Aqueles que ousavam – e eram poucos – eram rapidamente reprimidos pelo governo. Uma angústia inexplicável se apoderou de mim enquanto eu lembrava disso. Minha família sempre se calou. Afinal, éramos todos 80% – o mundo era uma maravilha para nós – porque iríamos arriscar perder tudo? Nunca havia sido barrado em nada, por mais que a pureza exigida aumentasse progressivamente, 87% era ainda um número muito alto. Mesmo assim, algo me incomodava.

 

Eu sempre me calei.

 

Por um momento, fiquei aliviado que estava cercado de máquinas e não de humanos.

 

T4: garantindo um futuro melhor para a sua família.”

 

Saindo do laboratório, decidir fazer um caminho diferente. Aquele bairro era exclusivo para 70%+, então eu sabia que estava seguro. As pessoas que passavam por mim estampavam alegria no rosto. Eram jovens, extravagantemente vestidas, acompanhadas de suas famílias tão perfeitas quanto. E tão brancas, ah, mas tão brancas. Tão… iguais.

 

Decidi que precisava de um tempo para pensar sobre aquilo. Parei em um café qualquer, claramente recém construído. Na porta, segui o ritual que já fazia há tanto tempo: peguei um dos cotonetes na máquina, passei pelo interior da bochecha para coletar saliva e coloquei-o na abertura de metal.

Analisando…

 

Talvez eu pudesse escrever sobre tudo aquilo. Usando metáforas, é claro. Eu sempre me calei, com medo de perder todos os privilégios, mas talvez eu não precisasse falar abertamente. Seria uma espécie de protesto silencioso, algo para aliviar o peso da minha consciência. Eu estaria saindo da minha bolha e ajudando – mesmo que indiretamente – as pessoas que não tinham tudo aquilo que eu tinha. Eu estaria fazendo uma boa ação.

 

A porta emitiu um beep, mas esse era diferente; talvez porque era um prédio novo. Para minha surpresa, um aviso piscava em vermelho na tela, e, por algum motivo, eu tive que ler várias vezes até entender.

 

87% de pureza detectado.

Requerido: 90%.

Acesso negado.

 

 

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