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O aborto sob a ótica científica e social

O Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto remete ao passado de luta das mulheres e sugere que abortar também é uma forma de preservar a vida Por: Ana Helena Corradini (anahelenacorradini@gmail.com) Foi durante o 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, ocorrido há exatos 26 anos, em que se definiu o 28 de setembro como …

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O Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto remete ao passado de luta das mulheres e sugere que abortar também é uma forma de preservar a vida

Por: Ana Helena Corradini (anahelenacorradini@gmail.com)

Foi durante o 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, ocorrido há exatos 26 anos, em que se definiu o 28 de setembro como sendo o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina. A data adquire um simbolismo ainda maior pois faz referência a um acontecimento histórico. Também em 28 de setembro de 1871, quando o Brasil era um Império governado por uma elite composta por homens brancos, foi promulgada a Lei do Ventre Livre, a qual considerava livre todos os filhos de escravas nascidos a partir desta data – e aqui cabem muitas ressalvas quanto à essa ideia de liberdade.

Transcorridos 145 anos desde o dia em que uma suposta emancipação foi garantida ao útero de mulheres escravizadas, o Brasil permanece sob a governança de um Congresso conservador (cuja composição é majoritariamente masculina, branca, da classe média e alta e de meia idade), o que contribui para a configuração de uma das legislações mais restritivas do mundo quanto à interrupção da gravidez. Além disso, apesar do sugestivo nome, a lei decretada naqueles tempos – que em determinados aspectos não se difere muito do atual – jamais assegurou à mulher o arbítrio de decidir efetivamente sobre o próprio corpo. E até hoje essa é uma das maiores causas pelas quais movimentos feministas despendem vultosas energias.

Campanha promovida pela revista TPM em 2014 alerta sobre a urgência em discutir o aborto no país
Campanha promovida pela revista TPM em 2014 alerta sobre a urgência em discutir o aborto no país

Olhar técnico

O ginecologista e obstetra Alexandre Faisal explica que a palavra aborto, apesar de usualmente empregada para referir-se à interrupção voluntária da gravidez, também faz referência ao aborto espontâneo ou natural. Este é caracterizado pela perda do embrião antes dos três meses e acomete cerca de 15% das gestações.

No Brasil, o aborto induzido ou provocado – geralmente chamado apenas de aborto – é tido como prática ilegal, sendo permitido apenas em três situações: se a gravidez for resultado de um estupro, quando a gestação pode provocar a morte da mãe ou nos casos de anencefalia do feto.

Nos casos de aborto retido ou incompleto, em que o desenvolvimento do feto cessa antes da décima segunda semana da gravidez, faz-se uso – via oral ou vaginal – de um medicamento chamado Misoprostol (Cytotec). Este provoca contrações uterinas, as quais são responsáveis por expelirem o produto conceptual. Segundo Faisal, esse é o mais seguro método de interrupção da gravidez, sendo efetiva e legalmente empregado no Brasil em condições de aborto retido, ao passo que a curetagem uterina constitui um meio mais agressivo e menos seguro. Após a décima segunda semana, em que o bebê possui todas as característica humanas consolidadas, o risco de ocorrer um aborto espontâneo reduz drasticamente (as chances passam de 15% a 1% ou 2%). Ademais, a partir desse período a interrupção da gravidez implica maiores riscos para a mulher.

Ilustração do artista Joan Turu (reprodução)
Ilustração do artista Joan Turu (reprodução)

A questão do aborto incide sobre um ponto muito delicado que é a definição da vida. Alexandre Faisal explica que, teoricamente, logo no início da gestação pode-se considerar que haja uma vida, mesmo que totalmente dependente da mãe. Mas não há um consenso entre as diversas interpretações que surgem. Se por um lado, sob perspectivas jurídicas, éticas, religiosas e mesmo filosóficas, o tema é sempre motivo de debates. Por outro, em grande medida, essas discussões permanecem impregnadas por concepções morais que foram estabelecidas em períodos anteriores, em que sequer a saúde e muito menos a opinião da mulher eram tidos como relevantes.

O momento presente

Em abril deste ano, a Ideia Legislativa nº 15 de 2014 enviada ao portal e-Cidadania, a qual pretende “regular a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo Sistema Único de Saúde”, foi encaminhada ao Senado após obter mais de 20 mil votos favoráveis.

O documento estabelece que práticas realizadas em clínicas particulares que visem o lucro permanecerão sendo consideradas ilegais, de modo que somente será descriminalizada a prática do aborto quando realizada segundo os critérios descritos por meio do SUS, com acesso gratuito garantido a todas.

Segundo a proposta, o hospital deverá informar previamente à mulher que optar pelo aborto quanto às alternativas à prática, “incluindo programas sociais de apoio financeiro, bem como a possibilidade de oferecer a criança à adoção”. Uma equipe interdisciplinar será responsável por prestar apoio psicológico e social à mulher, “para ajudá-la a superar as causas que induziram ao aborto, e para garantir que ela possua todas as informações necessárias para tomar uma decisão consciente e responsável”. A partir de então, após um período de cinco dias, um ginecologista realizaria o procedimento imediatamente.

Como todo projeto de lei em tramitação, a Ideia Legislativa está disponível para consulta pública no site do Senado e até o dia da conclusão desta matéria os votos favoráveis contabilizavam mais de 14 mil em relação aos contrários. O resultado da consulta é utilizado para direcionar os senadores de acordo com a opinião da maioria que participou da votação, mas não garante se a lei será aprovada ou não.

A proposta deverá passar por uma série de etapas até a sua deliberação, o que levará tempo, ainda mais tratando-se de um tema que encontra forte resistência no Congresso. Todavia, o fato de ela ter passado pela aprovação da população é simbólico e funciona como um indicativo do posicionamento de indivíduos comuns em relação à questão do aborto.

Alexandre Faisal, ao ser questionado sobre a capacidade do SUS em atender a todas mulheres que recorressem à interrupção da gravidez , afirma que mesmo com a legislação vigente no momento muitas mulheres têm dificuldades de conseguir a interrupção legal da gravidez – em grande parte por falta de acesso às informações básicas e desconhecimento dos direitos que lhes são garantidos. O ginecologista e obstetra, que se posiciona favorável à descriminalização do aborto, cita estudos apontando que mais da metade das gestações no país não são planejadas e acrescenta que, com a alteração da legislação, muitas das mulheres que se encontram nessa situação poderiam optar pela interrupção voluntária, significando um grande desafio ao SUS para atendê-las. Para ele, “nosso sério problema de desigualdade social tem reflexos no tipo de assistência à saúde, sendo que mulheres ricas podem ter acesso a clínicas que prestam ilegalmente o serviço [de interrupção gestacional], enquanto mulheres pobres recorrem a métodos [abortivos] que as colocam em risco”. Assim a alteração legislativa poderia atenuar esse cenário profundamente injusto, no qual a posição social é o fator responsável por determinar o quão seguro será o processo de interrupção da gravidez.

Batalha que perpassa os tempos

Lais Modelli é graduada em jornalismo e criadora da página Nem uma (mulher) mais e contou ao Laboratório que, desde seu surgimento, os movimentos feministas vêm compondo um calendário cujo objetivo é retomar pautas históricas da luta das mulheres, como forma de atribuir-lhes maior visibilidade na esfera pública. Além do mais, ela considera a definição de datas como sendo fundamental no sentido de organizar as diversas vertentes feministas em uma única lógica temporal.

Sob essa perspectiva, passado e presente relacionam-se na história de luta das mulheres. A jornalista analisa “que a mulher que hoje luta para ter o direito de abortar em segurança é, mas não somente ela, a mulher que não tem dinheiro para pagar por um aborto em clínicas clandestinas” e, baseando-se em estatísticas, é possível notar que a mulher negra é quem detém a menor parcela de privilégios e direitos na sociedade. Fazendo uso da letra de Elza Soares, Lais comenta: “[a mulher negra] é a ‘carne mais barata do mercado’”.

Não obstante, o paralelo mais importante a ser traçado entre a Lei do Ventre Livre e o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto, destaca, é que o aborto seja discutido não simplesmente do ponto de vista biológico, mas seja levado em conta sobretudo seu aspecto social, “uma vez que homens e governos também abortam filhos, todos os dias”. Assim, o fomento de debates acerca do aborto permite que mulheres possam vir a experimentar a verdadeira autonomia sobre seus corpos. Autonomia essa que nenhuma lei, tampouco a do “Ventre Livre”, jamais foi capaz de garantir.

Ilustração da artista María Acha-Kutsher (reprodução)
Ilustração da artista María Acha-Kutsher (reprodução)

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