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O feminismo pelo qual muitas se esqueceram de militar

Por Victória Damasceno (damascenovictoria@gmail.com) ATUALIZAÇÃO: o título anterior, “O feminismo pelo qual se esqueceram de militar”, foi alterado, em 17/06/2016, para “O feminismo pelo qual muitas se esqueceram de militar”. Na primeira construção, em crítica direcionada ao “feminismo branco” — o qual, conforme diz o texto, invisibiliza as pautas das mulheres negras e da periferia —, …

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Por Victória Damasceno (damascenovictoria@gmail.com)

ATUALIZAÇÃO: o título anterior, “O feminismo pelo qual se esqueceram de militar”, foi alterado, em 17/06/2016, para “O feminismo pelo qual muitas se esqueceram de militar”. Na primeira construção, em crítica direcionada ao “feminismo branco” — o qual, conforme diz o texto, invisibiliza as pautas das mulheres negras e da periferia —, a autora da matéria acabava por desconsiderar, mesmo que sem intenção, a própria militância das mulheres negras. Hoje ela confirma não ter sido esse seu propósito.

As duas linhas finas tatuadas em seu braço direito já denunciavam sua distância social com a realidade da qual tratávamos ali. “É em homenagem ao meu pai que é físico”, disse Renata Conde. Jovem, branca, 27 anos, psicóloga formada pela Universidade de São Paulo, trazia junto a ela experiências pontuais a respeito do tema de sua militância: o feminismo.

Fundadora do Movimento Mulheres em Luta, Renata é uma militante do grupo de formação feminista no bairro da Brasilândia, na zona Norte de São Paulo. Na periferia da cidade, a Brasilândia possui apenas 264 mil moradores, que em sua maioria possuem ascendência  nordestina devido à  instalação destes migrantes na região na década de 50 e 60, quando fugiam da seca que assolava o sertão. Cerca de 68 anos depois da formação do bairro, ele ainda conta com grandes índices de violência contra à mulher, tendo um aumento de 108% nas internações por agressão a mulheres em apenas dois anos.

Quando discutimos estes dados, Renata se mostrou inconformada. “A gente vai estudando os números, os casos e tudo o que acontece no Brasil, e a conclusão que a gente chega é que só nos resta a luta.” Ela diz que aquelas mulheres da periferia já não possuem nada, a não ser a certeza da violência, seja física, verbal ou moral. “Quem tem menos a perder é quem tem mais disposição de luta, e as moradoras da periferia não tem nada dado, então tem muito pouco a perder. Quanto menos você tem, menor é o medo da perda, então só te resta aquilo, só te resta a luta.”

Construir um movimento na Brasilândia foi, para ela, uma estratégia de militância. “Meu interesse pessoal é justamente fazer o feminismo de maneira mais concreta, colocando de fato as mulheres trabalhadoras como protagonistas da luta das mulheres. Eu fui por uma questão mais ideológica e menos concreta da minha vida. Mais por um ideal, do que pela minha causa”, completa.

Com as raízes do movimento feminista fundadas historicamente na burguesia branca, as mulheres negras e periféricas ficaram cada vez mais afastadas de meios que pudessem equipará-las ao gênero masculino. “O feminismo surge mundialmente muito afastado tanto das mulheres trabalhadoras como das negras. Inclusive esse próprio nome foi criado na luta pelo sufrágio universal nos Estados Unidos, em que eram essencialmente as mulheres brancas e burguesas. Elas eram, por exemplo, contra os direitos iguais para os negros, então o feminismo nasceu com essa contradição”, conta Renata.

As mulheres burguesas que iniciaram o feminismo no final do século XIX eram brancas e não estavam preocupadas com as pautas e opressões que sofriam as mulheres negras e trabalhadoras. Enquanto iam para reuniões discutir o voto feminino, deixavam seus filhos com as babás negras. Além disso, a herança racista da escravidão permeava seus argumentos: naquele momento, os homens negros podiam votar. A possibilidade de que as pautas dos negros tivesse grande representatividade era um pesadelo. Assim, as mulheres burguesas argumentavam que, se elas votassem, o número de votos dos brancos seriam superiores aos dos negros, o que manteria os interesses burgueses acima dos outros.

Brasilândia
Bairro da Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo (Foto: Ignacio Abbad Slocker/CCE_SP)

No Brasil, o processo de formação do movimento feminista foi um pouco diferente: ele nasceu nos anos 70 e 80, e já veio colado à luta dos trabalhadores, junto com as greves do ABC. Renata afirma que esta particularidade faz com que as mulheres periféricas acreditem que os seus maiores aliados são, na verdade, os homens trabalhadores, e não as mulheres burguesas.

Ela conta que as burguesas também oprimem porque não sabem qual é a luta das mulheres trabalhadoras. “Elas sofrem opressão, mas conseguem realizar o empoderamento. Já as mulheres trabalhadoras não, porque o empoderamento como disseminado hoje é uma saída individual. Empoderada é a burguesia, os trabalhadores lutam pelo poder, não vão atingir o empoderamento sozinhos”, denuncia. Elas lutam pela chefia no trabalho, lutam pelo amor livre, para pararem de ser representadas como mulheres delicadas, que devem estar sempre “adequadamente vestidas” para conseguirem bons maridos, lutam para alcançarem a libertação sexual. As mulheres periféricas não. “O que a mulher trabalhadora quer pra vida dela não é ser chefe de algum lugar porque isso nem tá na sua perspectiva, nem passa pela cabeça delas. O que ela quer é não apanhar”, completa.

A militante diz ainda  que as pautas do movimento feminista periférico são completamente diferentes daquelas discutidas nos movimentos centrais e universitários. A representatividade da mulher negra e trabalhadora está sempre ligada a uma grande sexualização de seu corpo, ainda legado da herança escravista que permitiu que os homens brancos tivessem propriedade em relação ao corpo das negras. Uma diferença categórica é que o movimento feminista central e branco vem cada vez mais se mostrando contrário à monogamia, mas nas periferias a realidade é bem diferente. “Enquanto para as mulheres brancas a monogamia aprisiona e oprime, na periferia este é o sonho das mulheres trabalhadoras.” Renata conta que as mulheres que chegam às  reuniões na Brasilândia possuem uma realidade de solidão: todas as que tem filhos são mães solteiras, sem exceção. Assim, o avanço que elas possuem é conseguir um relacionamento monogâmico. Ela conta também que a sexualização e a objetificação da mulher negra na mídia fortalecesse a necessidade de um relacionamento monogâmico. “Quem é a Globeleza, quem é a rainha de bateria? São as negras. As mulheres chegam na reunião se perguntando: ‘Nós realmente somos só isso?’”.

renata conde
Renata Conde (Foto: Acervo pessoal)

Um grande exemplo do espaço de sexualização da mulher na periferia é o “Bueiro”, local onde ocorrem os bailes funk da Brasilândia. Quando tem, ninguém dorme. O retrato que me foi apresentado é o seguinte: meninas jovens, negras, que sem calcinha dançam em cima dos carros. Terminam a noite se relacionando com cerca de oito homens. Então essa se tornou a realidade das mulheres na periferia. Renata diz que a luta delas está longe de ser por liberdade sexual. “Enquanto a mulher branca foi criada para ser virgem e para casar, a mulher negra é o contrário: elas foram estupradas enquanto escravas, e o que ficou foram homens com direitos sexuais sobre os seus corpos”. Ela afirma que, para elas, a liberdade sexual é opressão.

O movimento feminista na Brasilândia nasceu colado ao Quilombo Raça e Classe, que é um movimento negro, justamente porque as mulheres da periferia são mulheres negras. Nisso, a especialista em feminismo negro Djamila Ribeiro concorda em gênero, raça e classe.

Numa aula descontraída na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, a visita da mestra em Filosofia conseguiu atingir a mim e a muitos outros ouvintes, que foram superiores ao número de alunos matriculados na aula em que ela fora convidada para falar sobre feminismo negro.

Negra e militante do movimento, ela acredita ser impossível falar de feminismo na periferia sem pautar a questão da mulher negra, sendo que nós – eu, ela e as mulheres trabalhadoras negras – somos a maioria que ocupam estes espaços. Ela acredita que o feminismo nas periferias não alcança a notoriedade do feminismo branco justamente por se tratar de um movimento que leva recortes de raça e de classe social. “Não é muito explicitado, pois o feminismo que ganha mídia é o branco, que são mais midiáticas, mainstream, que aparecem mais. Mas existem muitas mulheres fazendo trabalhos que são invisibilizados, ou sequer são reconhecidos, mas que estão promovendo uma mudança muito importante na sua comunidade”, conta.

Djamila Ribeiro
Djamila Ribeiro (Foto: Fanca Cortez)

Não é possível descolar o movimento feminista periférico do movimento negro. O feminismo das mulheres trabalhadoras é, quase completamente, o feminismo negro. Mas por quê?

Depois da abolição da escravidão, não houve nenhuma reforma que buscasse fazer com que os negros fossem social e economicamente inseridos. Florestan Fernandes, em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, conta que os negros não possuíam nenhum tipo de assistência e garantia que os protegessem na transição ao trabalho livre. “Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho”. Abandonados, eles precisavam buscar locais onde poderiam viver, e expulsos da propriedade em que trabalhavam, os negros se viram obrigados a fugir para os locais que ainda não eram habitados. Como as grandes planícies centrais já estavam ocupadas pela elite branca e pelos imigrantes, só restaram aos negros os arredores dos grandes centros: os morros. Desta forma, o fenômeno de periferização urbana tem em meado no século XIX um marco: a crescente busca dos negros por moradia nos arredores dos grandes centros.

No entanto, mesmo libertos, a lógica de trabalho e opressão não mudaram, principalmente para as mulheres negras. Angela Davis, uma mulher negra, americana e feminista, afirma em sua obra Mulher, Raça e Classe que as mulheres escravas passaram para suas descendentes livres um legado de trabalho pesado, de perseverança e de tenacidade, devido à  forma como eram tratadas pelos senhores, que exigiam delas uma performance “masculina” em seus trabalhos.

Esse legado, que tornou as mulheres negras mais próximas à igualdade sexual dos homens negros, também as distanciou cada vez mais das mulheres brancas. E acentuou ainda mais as diferenças na representação da mulher negra em relação à branca na sociedade.  

Djamila afirma que foi somente quando as mulheres negras começaram a militar dentro do feminismo  que os recortes raciais e sociais começaram a ser discutidos, de forma a apresentar que os problemas das negras eram diferentes daqueles das mulheres brancas. ”Então elas [as feministas negras] foram as primeiras a questionar e mostrar o quanto esse movimento, apesar de ter nascido com o objetivo de libertar as mulheres, libertou um tipo de mulher e reproduziu opressões e lógicas racistas e classistas em outro“, denuncia.

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Angela Davis entra na Universidade da Califórnia em Los Angeles para sua primeira aula de filosofia em outubro de 1969. (Foto: George Louis)

Ela também concordou que as feministas brancas podem agir como opressoras ou aliadas: diz que existem aquelas que participam dos movimentos coletivos na periferia, mas também há mulheres brancas que insistem em universalizar a categoria mulher, sem perceber as instersecções entre o gênero, a raça e a classe social. “As mulheres brancas que têm uma situação de privilégio podem usar essa situação para dar visibilidade pra pautas das mulheres negras e periféricas.” Ela afirma que somente assim nós poderemos ganhar mais força, mas que muitas burguesas ainda se recusam a fazer esse trabalho.

Questões que são, no geral, pautas de uma luta progressiva e que aparentam não ter gênero específico, como ir contra à redução da maioridade penal, na realidade são também pautas do feminismo na periferia, pois são os filhos das mulheres negras que estão sendo presos e assassinados nas periferias brasileiras. “Quando a gente discute violência policial do homem negro, deveria ser uma pauta feminista também, porque essa violência está atingindo mulheres negras.” Djamila diz ainda que não podemos pensar somente em pautas que vão libertar as mulheres, mas naquelas que irão em favor do combate das opressões. “Se existe mulher negra, então é necessário lutar contra o racismo. A opressão do homem negro muitas vezes nos atinge enquanto mulheres negras“, completa.

Esta discussão da redução da maioridade penal também chegou no grupo de formação da Brasilândia. Renata Conde conta que esta é uma questão muito difícil de ser tratada na periferia. “Embora isso ataque diretamente as mulheres, elas ainda são muito atacadas pelas informações da mídia tradicional”. Ela conta que, se não fosse por meio do grupo de formação, as mulheres dificilmente conseguiriam refletir a respeito de um assunto tão importante e que as afeta diretamente como a redução da maioridade penal. “Uma das meninas até chegou a falar que tudo o que ela aprendeu sobre política e feminismo foi no grupo. E ela se sentia super insegura, sempre dizendo que não servia pra fazer aquilo”, conta ela.

No meu encontro com essa menina, senti a mesma coisa: insegurança e o medo que rondavam suas palavras. Mas também a força de alguém que mal podia acreditar que estava sendo entrevistada. “Nossa, não acreditei quando você veio falar comigo. Você existe mesmo!”, me disse Nádia Pina. Moradora da Brasilândia, formada em pedagogia, fez faculdade desafiando os pais que diziam que isso não era coisa de pobre, muito menos de mulher. Nascida e criada na periferia, Nádia só saiu de lá para estudar . “Eu não sabia como fazer uma faculdade, não tinha nem noção que do era fazer um vestibular, não tinha noção de nada”, conta.

Nádia Pina
Nádia Pina (Foto: Acervo pessoal)

Isso foi reflexo da sua infância. “Eu fui criada dentro de casa, convivi com o alcoolismo do meu pai e problemas do meu irmão”, conta. Segundo ela, o pai não permite manifestações que vão contra à sua opinião, por isso, não ousava desafiá-lo. Mas isso começou a lhe incomodar: Nádia conta que, conversando com as meninas do grupo, pode perceber que ela podia ter uma opinião contrária, e que ele não era seu dono. “Eu entendi que o que eu devo é respeito, não submissão. Vi que a vida fica muito melhor quando a gente pode escolher e não tem que engolir as coisas.”

Com a mãe, no entanto, era diferente. Ela diz, chorando, que viu durante a vida inteira a mãe servindo o pai e o irmão. Conta que sempre viu o sofrimento da mãe para que ela conseguisse manter a casa arrumada, a comida na mesa, as roupas lavadas. “Ela sofreu e sofre muito com o machismo, mas acho que nunca vai entender isso”. Então a ajuda a combater o machismo da forma que pode : arruma a casa com a mãe e a defende com unhas e dentes. “Hoje eu entendo que ela não teve poder de escolha. Não vejo problema na mulher não trabalhar e cuidar da casa, mas luto pra que isso seja uma escolha e não uma imposição.”

Só depois de entrar na faculdade, começar a fazer terapia e conhecer uma professora que lhe apresentou a sororidade, foi que ela entendeu o acerto de optar pelos estudos. Seu primeiro contato com o feminismo aconteceu na creche em que trabalhava, quando a amiga Ingrid, também professora, ao lhe dar um livro sobre o tema lhe falou: “A vida pode ser muito mais agradável do que essa que você conhece”. Essa parte ela me contou chorando. “Não tem como falar da minha vida e não citar essas duas professoras”, completa.

Ao ver que a amiga havia conseguido passar num concurso, ela passou a crer que também podia. E passou. Hoje ela acredita que o que mais ganhou com o feminismo é acreditar que mesmo ela sendo pobre e mulher, ela pode ter conquistas. “O feminismo me disse que eu podia e que eu era capaz, e me mostrou que meu poder de escolha me levaria até lá.”

Escolher. Isso foi o que Nádia não pode fazer a vida inteira. Não podia escolher as roupas, as companhias, os estudos, os trabalhos. Tudo lhe era imposto. Mas o feminismo desconstruiu esse legado social. “O que eu aprendi com a minha amiga, e com as meninas do Movimento Mulheres em Luta, é que eu tenho poder de escolha. A minha roupa é minha escolha, e meu corpo é meu. Eu não vou mais me submeter àquilo que as pessoas querem”, completa.

Tentando não invadir o seu espaço tímido, pergunto a Nádia se ela tem um sonho. A resposta é prosaica: “Quero continuar estudando”. Sorrindo como quem se lembra que pode fazer isso, muda a expressão quando pergunto se ela se considera feminista. “Eu acho que não”, responde.

Mas desminto: é feminista sim. Muito feminista.

3 comentários em “O feminismo pelo qual muitas se esqueceram de militar”

  1. Nádia Pina , chorei ao ler a entrevista e saber que tenho esse grau de importância na vida de alguém… Eu te levei um dia e agora quero que me leve…vc é essencialmente resiliente na vida e no pensamento… Vc é intensa e inteligente, e é feminista sim! Te amo. Vc é minha família!
    Bjus, Hingrit

  2. Texto fantástico pois cheio de sensibilidade para ver a classe com cor e gênero… Os padrões culturais que encarceram parecem não serem dissolvidos apenas pelo econômico. Gostaria de poder ser mais ativo nesse tema mas como homem fico preocupado em “como”.
    Abraços a todXs!

  3. Um texto tão fácil de ler e que me prendeu tanto. Muito bom aprender mais e encontrar inspiração para as nossas lutas. Me identifiquei tanto com a história da Nádia. Ainda não entrei na faculdade mas tenho certeza que vou levar as coisas que li aqui no coração pra sempre e essas palavras vão me ajudar a conquistar meus objetivos. Espero, um dia, ser tão inspiradora quanto todas essas mulheres.

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