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A expansão evangélica: causas, estigmas e realidade

Por Felipe Saturnino (saturnofelipe.fs@gmail.com) Recentemente, o frenesi gerado pelas manifestações do pastor Silas Malafaia em relação ao anúncio publicitário veiculado por O Boticário, onde casais homossexuais aparecem se presenteando com perfumes da marca, e a aparição de uma transexual crucificada simbolicamente na 19ª Parada LGBT de São Paulo revelou duas faces de um problema para o …

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Por Felipe Saturnino (saturnofelipe.fs@gmail.com)

Recentemente, o frenesi gerado pelas manifestações do pastor Silas Malafaia em relação ao anúncio publicitário veiculado por O Boticário, onde casais homossexuais aparecem se presenteando com perfumes da marca, e a aparição de uma transexual crucificada simbolicamente na 19ª Parada LGBT de São Paulo revelou duas faces de um problema para o debate público brasileiro. A priori, o discurso homofóbico do pastor escancara a magnitude do preconceito ainda existente em relação à homoafetividade, que está disseminado pela sociedade brasileira. Por outro lado, há uma escandalização da discussão, já que irrompem discursos de ódio nos dois lados, seja de membros da comunidade LGBT, seja de religiosos (católicos ou evangélicos). Estes últimos, aliás, vem adquirindo protagonismo na cena política nacional, ainda que seus interesses representem afronta a minorias. Evangélicos também sofrem com declarações como as de Malafaia. É criado um estereótipo com suas imagens e uma espécie de luta contra LGBTs. Mas, afinal, como se deu a expansão evangélica? O que querem os evangélicos, hoje bem situados nos espaços de poder?

De início, o professor Ricardo Mariano, do departamento de Sociologia da FFLCH-USP (Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) trata de definir o segmento: “Evangélico é um termo genérico que recobre tanto as igrejas protestantes históricas ou tradicionais quanto as pentecostais e o segmento neopentecostal”. O fenômeno evangélico é, como se vê de partida, predominantemente pentecostal, já que, como ele conclui: “As protestantes históricas crescem muito pouco com exceção da [Igreja] Batista, que cresce um pouco mais”.

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A expansão do segmento conta com a multiplicação de igrejas espalhadas por diversas regiões, muito presente em áreas de periferias. (Foto: Revista Época)

Os censos de 2000 e 2010 aclaram horizontes numericamente: no começo da década passada, os pentecostais eram 17,6 milhões; em 2010, inflaram em quase 50%, atingindo os 25,3 milhões de fiéis – em 2013, uma pesquisa Datafolha, com margem de erro de 2 pontos percentuais, atestou que 19% dos brasileiros eram pentecostais, ou 38 milhões de pessoas à época. A Assembleia de Deus, de que Malafaia e a ex-petista e presidenciável nas últimas duas eleições, Marina Silva, fazem parte, lidera o boom que, segundo Ronaldo de Almeida, professor de Antropologia Social da Unicamp e estudioso do pentecostalismo, não é recente, mesmo que seja mais evidente agora pelo vigor de sua expansão: “ [Faz] umas quatro, cinco décadas. Eu diria isso, porque antes você tinha, até o final dos anos 50, 92% de católicos. O negócio começa a mudar quando você tem esse crescimento das cidades e mais um processo migratório forte”, diz o professor, referindo-se a um processo de conversão dos nordestinos após a migração, atentando, desde já, para o caráter comunitário que agremiações evangélicas representaram aos que vinham tentar a vida no Sudeste, que se industrializava.

De fato, o sentido comunitário que a igreja evangélica tem ao acolher e criar identidades para fiéis é notável hoje e um dos “fatores de atração”: antes dos cultos, música gospel em volume elevado, conversa em voz alta entre fiéis, formando vários grupos espalhados antes da cerimônia, sempre tendo em vista identificar um forasteiro qualquer que nunca antes havia adentrado alguma reunião do gênero. “Meu nome é Felipe, prazer”, disse eu, timidamente, ao que me observaram: “Fique à vontade” e “Aproveite e venha mais vezes”. É nesta intimidade entre fiéis e no apelo de coesão que incorre muito pela tendência de crescimento contrária à comunidade católica, que perdeu no mínimo 10 milhões de fiéis nos últimos 15 anos, segundo pesquisa do Datafolha em 2013. “O apelo das igrejas evangélicas é muito maior porque fala da tua vida, porque acolhe mais, porque tem um sentido de comunidade a que a Igreja Católica pouco significado deu – na verdade, você pode estar na missa sem conhecer ninguém. As igrejas evangélicas são muito mais acolhedoras, formam redes de amizade, redes de parentesco, isso é um fator de atração forte”, confirma Almeida.

Esse tipo de aproximação é efetivo e se conjuga, no segmento neopentecostal, com a teologia da prosperidade, como se percebe na Igreja Universal, de Edir Macedo  cuja TV Record, comprada por ele em 1989, consolida o ingresso evangélico nos meios de comunicação. Dando atenção à experiência da vida cotidiana dos fiéis, essa doutrina intervém em seus comportamentos: “Você tem uma influência maior sobre a vida dos fiéis”, afirma Vinicius do Valle, mestre em Ciência Política pela FFLCH. A doutrina da prosperidade se baseia na materialidade e na crença na bênção financeira, retratando a vida cotidiana do fiel como uma expressão de sua vida espiritual, havendo compatibilidade entre o sucesso terreno e o espiritual.

Considerando a expansão evangélica como um fenômeno religioso e social, mais comum entre pessoas de baixa renda que tiveram inegável avanço econômico na última década, não é possível deixar de lado seus efeitos na realidade política. O fortalecimento desse setor social é paralelo a um longo período de inserção evangélica na atmosfera política brasileira, culminando hoje na chamada bancada evangélica, correspondente à terceira maior bancada da Câmara dos Deputados. Do ponto de vista ideológico, do Valle trata de afirmar que a bancada “é mais homogênea que os evangélicos”, ou seja, revela que as dissonâncias ideológicas desse segmento são bem menores do que na comunidade evangélica como um todo.  A militância dos 78 parlamentares da bancada – 75 na Câmara presidida por Eduardo Cunha, também evangélico  representa as igrejas, assembleias com valor político crucial e que pesam significativamente nas eleições para a Câmara.

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(Arte: Cesar Isoldi/Jornalismo Júnior)

“No final dos anos 70, começo dos anos 80, eles começam a ingressar na vida partidária”, explica Mariano. As igrejas evangélicas são redutos conservadores do ponto de vista moral, de enorme função política. Hoje, impactam a vida eleitoral pela numerosa quantidade de fiéis, mas o professor se refere a um período em que tinham pouco significado político pelo pequeno contingente que esses religiosos formavam: “Antes disso, sofriam muita pressão externa para apoiar candidato. Eles eram alvos de um assédio por parte de candidatos não religiosos ou católicos, e os pastores negociavam o apoio dos fiéis em troca de cimento, areia, telha, terreno”, isto é, materiais de uso para as instalações eclesiásticas.  “Desde a década de 80, isso é um movimento muito forte e deliberado de muitas das igrejas, as principais delas, eu diria”, afirma do Valle.

A arena política não há de ser separada dos religiosos, já que são um vasto setor, presente na nossa sociedade e que deve ser representado, como qualquer outro haveria de sê-lo. A questão capital é: como são canalizados no Estado os seus interesses? O que tais interesses colocam em jogo? Os evangélicos são conhecidos na atuação por pautas da moralidade e da família. O quanto afetam outras minorias? Como, eleitoralmente, a forte bancada contribui para imobilidade de determinados projetos?

Segundo do Valle, para o segmento neopentecostal em particular, a situação é complexa. Neste caso, ele emprega o termo sociológico “pressões cruzadas” para mostrar o quanto os recortes sociais estão sujeitos à influência de vários fatores para adotar, por exemplo, uma postura político-eleitoral. Em suma, o segmento dos neopentecostais, predominantemente de baixa renda, sofre influência religiosa, das recomendações de voto por parte da igreja. Porém, também sente influência dos efeitos das políticas sociais através das quais são beneficiados, como ocorreu no caso do governo Lula. Assim, são criadas pressões divergentes: se esse governo progressista foi capaz de gerar melhores bases de consumo para esse segmento  além de em tese lutar por pautas de minorias, questões como a dos LGBTs , o segmento vota e apoia o governo, podendo ir de encontro com a recomendação de voto da igreja. Nesse sentido, não cabe tratar o evangélico, o pentecostal no caso, como um sujeito de opção única e pensamento “conservadores”. O evangélico é um indivíduo que, habitando geralmente os estamentos mais baixos da população, ganha com tais políticas de consumo e releva aspectos sociais e econômicos por essas razões. De fato, a bancada os representa em grande medida, enfrentando pautas que vão de encontro a seus interesses. Raphael Freston, mestrando em Ciências Sociais da FFLCH, afirma que essas são “as maneiras mais rápidas de evangélicos se expressarem na política”, o que certamente contribui para uma visão generalizada por aqui, na caricatura do evangélico unívoco. Pois o que há são evangélicos e evangélicos.

A imagem do evangélico tradicional é falaciosa porque vai de Luther King, o pastor símbolo na luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos, a Feliciano, o pastor que já afirmou que gays possuíam “podridão” de caráter e negros eram amaldiçoados. Como qualquer outra imagem relativa a um ser pertencente a determinado grupo social, é equivocada. Os membros da ABU (Aliança Bíblica Universitária) falam por si e de outras exceções: a ABU é um movimento religioso sem afinidades partidárias, explicam Victor Barcellos (aluno de Relações Públicas da Universidade de São Paulo) e o próprio Raphael Freston, sugerindo que posições políticas não podem ser derivadas simplesmente de um visão teológica, mas sim debatidas. Fora do ambiente típico das comunidades evangélicas, como no âmbito universitário, mesmo sem claramente se denominarem evangélicos (na acepção comum do termo), Barcellos e Freston opinaram sobre as questões que lhes perguntei e que atualmente perfazem o cenário formado: para eles, religião e política são inseparáveis, os católicos operam nos bastidores da política brasileira por alguma razão e, por fim, os evangélicos da Câmara haveriam de pensar em contribuições teológicas para questões políticas. “Falta às comunidades evangélicas pensarem de forma estruturada”, já que “casamento igualitário e aborto são pautas maximizadas, absolutizadas para a política”, fala Freston, indagando o porquê de evangélicos se calarem a respeito da terceirização, atualmente em trâmite.

Antes mesmo de uma incursão pela questão da influência da bancada evangélica na laicidade  conceito sociológico que concerne à neutralidade do Estado em relação às religiões , Almeida trata de caçoar: “Até parece que antes éramos laicos e agora estamos ameaçados”. O professor se recordou das eleições do ano passado, em que o tema teria sido posto em cena em função da candidatura de Marina Silva. Almeida considera falsa a premissa de que a laicidade é posta em xeque com uma bancada parlamentar evangélica influente. De fato, ele considera que o catolicismo está impregnado na realidade político-histórica brasileira. Mariano ressalta a presença de uma lei na Constituição Federal que admite a existência de um ensino religioso normal nas escolas públicas de ensino fundamental no Brasil (Art. 210, § 1º), que reforçaria a presença católica na esfera pública caso se fundamentasse na forma confessional de aprendizagem. Isso representaria um desvio a essa noção tão cara de laicidade, relegando a conduta religiosa à esfera privada.

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Na última semana, deputados federais da bancada evangélica realizaram, no plenário da Câmara, um protesto à Parada Gay e às Marchas das Vadias e da Maconha. Em seguida, eles rezaram o Pai-Nosso. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Para Almeida, o catolicismo está casado com o espaço político e público, chegando a “confundir-se com nossa paisagem, sendo invisível”. Desse modo, o debate sobre laicidade sofre influência de um eminente catolicismo, apesar da queda no número de católicos. A bancada evangélica representa, enfim, uma minoria religiosa, decerto em franca expansão, que se tornou expressiva no Congresso, detendo um contraponto em um país extremamente católico. Os evangélicos, no entanto, encontram ressonâncias e repercussões em outros grupos ideologicamente semelhantes, nos quais católicos também se incluem, além de outros elementos sociais de cunho conservador, que se chocam diante da defesa de pautas progressistas.

“A desqualificação é mútua”, retorna o professor Mariano, descrevendo a posição de grupos LGBT e evangélicos na Câmara dos Deputados. Nesse sentido, a minoria evangélica traz à tona um debate sobre laicidade, nossas raízes católicas e problemas para o debate democrático. Com uma fé individualizada, com adaptação às periferias, intimidade com seus fiéis, em geral de classes economicamente desfavorecidas, as igrejas evangélicas pentecostais chegam aonde o Estado não chega, incutindo-lhes uma identidade e mentalidade comunitária. Se conservadoras, sustentáculos de pautas problemáticas, se constituintes de uma nova direita, uma direita “tingida de cristianismo” (nos termos do professor), elas estão aí. Com a suposta laicidade ameaçada, permeada pelo catolicismo, mas que deve ser debatida, a pergunta é: como articulá-las com a democracia, com cultos conduzidos por Cunhas, opiniões de Felicianos e vídeos de Malafaias? Eis a questão, religiosa e política.

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